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Esta página mostra meus trabalhos já publicados e alguns inéditos - contos, poesias, crônicas e imagens. Também estão aqui as versões originais das letras que fiz para a banda Dose Letal. Há trabalhos do século passado e atuais.
Olhando a sua direita, estão as obras dispostas por categoria e você pode acessá-las abaixo no "Arquivo do BLog".
Também posto aqui alguns trabalhos de divulgação de amigos ou pessoas relevantes - ver "Textos Indicados", à sua direita.
Depois está a lista de obras que participaram de concursos. Estas obras já foram citadas na lista "Obras por categoria". Apesar de algumas já merecerem reescrita, foram mantidos os originais.
No fim está uma lista de links de sites que considero que valem ser visitados.

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Amaral Peixoto, 13h47min. (Texto do curta-metragem)

Avenida Amaral Peixoto, 13h47min, Niterói, RJ. Um grito alto e estridente soa no meio da tarde quente e abafada. O formigueiro do centro da cidade pára e prende a respiração ao ver uma mulher que cai de joelhos diante de um homem alto e forte. Ele imóvel, punhos fechados frente a pequena figura que se curva em dor sobre a enorme e pontuda barriga que carrega.

João acordara cedo como todos os dias. Arrumou-se, arrancou alguns pêlos brancos que sobressaiam na barba. Sem aviso eles apareciam, mas não conseguiam se esconder na pele negra e, apesar de arrancados, teimavam sempre em voltar. Olhou o quarto, pousou a vista no pequeno, já não tão pequeno, encolhido no berço quebrado e velho que ganhara de um amigo cujo filho crescera. Viu a esposa arrumando a cama quebrada e velha que ganhara de um primo já falecido. Parou, percebeu os móveis da casa e que todos tinham história desconhecida, uma vida pregressa a qual ele invadira em algum momento, nenhum nascera com ele, nenhum saira da manjedoura da loja e dera seus primeiros passos nesta casa, e hoje sentia neles o mesmo desgaste que fazia doer suas próprias costas. Caridade não necessitada é gentileza, quando necessitada é veneno para o orgulho próprio. Bebeu o café que a esposa preparava todos os dias, beijou-a na testa, e pela primeira vez reparou nas rugas que se formavam em seu rosto. Olhou os móveis que pareciam estranhos não convidados e a si. Madeira, ferro, alumínio, ossos, músculos. De repente uma pressão no peito vem, ele fica aturdido por um instante, mas percebe que é por causa de sua nega que lhe traz o pão e – sua presença o relembra dos músculos do coração. Uma princesa. Dentro de seu pequeno vocabulário não havia palavra mais completa para o que sentia por ela. Ela era a mais linda. Era o que o acordava cedo todos os dias. Sua imagem o acompanhava enquanto colocava o tabuleiro nas costas e descia morro abaixo para o calor do asfalto. Como todos os dias.

Como se alguém apertasse o pause, todos permanecem inertes diante da cena. Jesuíno, punhos cerrados, com a cabeça inclinada na direção da pequena mulher que ajoelhada aperta desesperada o imenso ventre. Uns se afastam rápido, uns não conseguem andar, uns não sabem o que fazer. Outros não percebem o sentimento nefasto que começa a crescer dentro deles.
O mundo parecia suspenso no ar.


Raimundo acordara de uma noite cheia de sonhos. Hoje conseguiria um trabalho. Sentia profundamente isso. Preparara uma lista com os restaurantes da cidade e com as obras da prefeitura – pá ou bandeja, pouco importa, o que importa é que seria uma “vida honesta”, como prometera a sua mãe antes de vir para o Rio de Janeiro. Sua velha mãe, a pele marrom e trincada como o chão batido do sertão, cabelos grisalhos como as nuvens do litoral, cuja saudade lhe apertava a garganta, ele sonhava para ela uma velhice mais digna, fruto do que ele ganharia na dita “cidade grande”. Hei de honrar você minha mãe, dizia para si, e forçava ao escuro da memória as lembranças do tempo com o pai. As marcas que a mãe tinha no corpo, nos de seus irmãos, seu próprio dedo mindinho retorcido. Não chorou quando os guardas vieram leva-lo, e apontou o barreiro em que o pai escondia bem como os bois que roubara. Quando os guardas o algemaram e o jogaram atrás no carro, Raimundo voltou-se para dentro de casa, reuniu os irmãos pequenos, sentou-se na cabeceira da mesa e mandou que a mãe servisse o almoço.

Mais e mais pessoas param para ver o ocorrido. Maria, ajoelhada, continua a apertar a pontuda barriga como se segurasse o filho que queria rasgar o caminho para fora.
Impassível, Jesuíno continua.


José pegou o Livro e saiu apressado, tentando digerir as palavras do pastor sobre como deveria se resignar com a vida, com os outros e com seu emprego. Os patrões são homens ocupados José, de muitas responsabilidades e que sofrem muitas pressões, e você deve aprender a perdoar – A lição do Cordeiro. E José obedecia. Sempre. Obedecera durante toda uma vida sem sentir, até mesmo na tenebrosa hora em que teve de se separar dela. Não é boa moça, disseram os irmãos. Não é uma de nós. Mas quando fora falar com ela tremia sem saber a causa, e quando lhe fora pedido uma resposta, um porquê, “Você não me ama?” ele não o sabia dizer, os lábios se retorceram e antes que tentasse qualquer coisa ela se levantou e saiu porta afora. Ficou sentado, a olhar o Livro procurando algo que aliviasse sua dor e amansasse sua raiva.
José pegou o Livro e saiu apressado, tentando digerir as palavras do pastor, sobre como deveria se resignar com a vida, com os outros e consigo mesmo. Andava apressado, cozinhando a raiva em banho-maria.


Uma pequena multidão já se formara. Transeuntes param e começam a rodear os dois. Algumas vozes se levantam indignadas, enfrentando o medo que causa a figura do enorme mulato.
Jesuíno não se move.


Carlos era um bom policial. Há anos trabalhando internamente na delegacia, sempre evitou qualquer tipo de confusão, qualquer coisa que lançasse sombras sobre sua conduta, assim como qualquer dívida ou favor que pudesse ser usado para o forçar a agir fora dos seus princípios. Seu pedido de transferência para o interior do município sairia em breve, e ele ansiava por uma vida tranqüila só com ladrões de galinha e briga de vizinhos. Em seus planos de aposentaria, daqui a uns anos estaria descansando com nome e consciência limpos.

Élcio era o que se podia chamar de um policial linha-dura. Ou é ou deixa de é, e Se eu disser pula, tu pula eram seus lemas favoritos e se tornaram notórios em todas as delegacias. Seus boletins de ocorrência eram sempre obscuros, com dados conflitantes, perda de provas e muitas mortes com justificativas duvidosas.

O céu estava claro na Avenida Amaral Peixoto às 13h47min em Niterói, Rio de Janeiro.

De repente o ar incendeia e o mundo irrompe em tumulto e fúria.
Um alguém da multidão corre para a lateral esquerda do gigante mulato. Jesuíno se vira e o homem tomba antes mesmo de erguer a mão. Outro vem pela sua frente, mas um chute o arremessa de volta na mesma direção de que veio. As mãos do mulato dançam sobre a multidão, dois socos rápidos sobre um atacante na direita, uma cotovelada na esquerda e um rabo-de-arraia levam vários ao chão.
Jesuíno não pára de se mover.

“Qual o seu nome minha filha?”; “Maria”, ela responde. José olha para a mulher no chão, arrastada para um canto da calçada por três mendigas velhas a acudi-la: os cabelos suados de Maria grudados na testa, o ventre sem mais tamanho, o rosto contorcido de dor. As mãos apertam a barriga como se impedissem o filho de sair a qualquer momento sobre o papelão sujo em que estava.
Pensamentos e versículos reverberam em sua mente.

João avança sobre Jesuíno, mas, mal se aproxima, é lançado de volta, caindo sobre seu próprio tabuleiro e suas peças se espalham pelo chão. Raimundo tenta agarrar o capoeirista, mas este se vira e pega o braço do nordestino e o que segue é o som de ossos partindo. Poucos ainda estão em pé e Jesuíno não pára de se mover.

O esquálido José vê Maria no chão e o gigante Jesuíno a sua frente a devastar a tudo e a todos. Súbito, seu sapato chuta algo, e ele percebe a pedra que servia de calço para o tabuleiro de João. Sem perceber o porquê, abaixa-se e a segura com força.

Um estrondo ecoa na Avenida Amaral Peixoto. A multidão se espalha como ondas quando uma pedra cai no lago.

Carlos paralisado, com a arma na mão, olha o corpo de João que cai lentamente, com a bala alojada no crânio. A arma enferrujada disparara por acidente e acertara o camelô, que chutava o corpo caído do gigante mulato depois que este tombara com uma pedrada na parte de trás da cabeça. Élcio algema o crente e o joga junto com o nordestino de braço quebrado na traseira do camburão. Raimundo grita de dor e de protesto, mas é silenciado pela mão forte de Élcio. Carlos olha o corpo do camelô, então Élcio, com um sorriso amigável, se aproxima e diz para ele não se preocupar que o boletim de ocorrência assegurará o correto procedimento do “parceiro”.


No camburão José murmura versículos e do seu lado um sertanejo desespera ao pensar em uma velha senhora no sertão de Pernambuco que, naquele instante, sufoca em angústia. Longe dali, no Morro do Estado, uma dona de casa sente um aperto no peito e abraça seus filhos e começa a chorar sem saber por quê.



Maria, na ambulância olha Jesuíno sendo colocado no rabecão dentro de um saco preto. Seu espírito volta até a manhã daquele mesmo dia, quando marcara com ele para buscá-la na Avenida Amaral Peixoto às 14:00h. Ambos chegaram mais cedo. Ela o avistava de longe, sua figura imponente, ombros largos, corpo de atleta. E como era bonito! Algo que ele sabia bem, assim como muitas outras mulheres. Com quantas ela discutira, e quantas bateram em sua porta reclamando por ele. No começo ele pedia perdão, ela cedia, e tudo ficava bem. Mas agora nem a isso ele se dava mais ao trabalho. Todos sabiam, sentia a sombra dos vizinhos a segui-la, rindo ou lamentando por ela.
Mas ela carregava sua vingança no ventre.
Então ele se aproximou dizendo que tudo terminara, para ela pegar suas coisas e partir de sua vida. Ela reclamou, disse que ele enlouquecera, mas quando ele dissera que seu irmão confessara tudo, ela sabia que não havia mais volta. E sem aviso o mundo começou a girar, sua visão ficou turva, e, como se o bebê respondesse ao que acontecia, uma dor lancinante a acometeu, tão forte que a levou ao chão gritando. Então tudo virou treva. Quando se deu conta, algumas mulheres a levantavam do chão e a puxavam para um canto da calçada. “Qual o seu nome minha filha?”; “Maria”; “Esse cara não é homem, homem não faz o que ele fez!”; “Mas...”; “Quieta, minha filha, já vai passar”, “Mas...”; Maria, meio tonta, percebe o círculo de pessoas que começa a se fechar ao redor de Jesuíno.
Uma surra, sim, ele merecia uma surra. Mas então aquele homenzinho estranho, com a Bíblia na mão e que não tirava os olhos dela pegou uma pedra no chão e atirou em Jesuíno. Então veio o estrondo, a correria e o corpo de Jesuíno estirado no chão.

No ventre de Maria uma criança não entende a tristeza sem fim que lhe chega por meio do cordão umbilical, nem o som estranho que faz a sirene de ambulância, nem o futuro incerto e solitário que a espera.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Bela (Blues)

Ventos
vem e vão
e varrem
minha cabeça


De tudo que há de Belo
Que minha mente não esqueça
Que sua imagem brilha
Através da neblina
E ilumina o caminho
Por toda minha vida

Frágil
E quebradiça
E o medo
Que anoiteça

Quando o pavor chega
Desse mundo tão enorme
Sem família ou amigos
E entregue à própria sorte
Pois tudo que eu tinha
Perdi quando você se foi

Sem marcas
De ilusão,
Só tenho
Uma certeza

No vinho caiu água
Já não dá pra separar
Se a chuva pro céu não volta
Se o rio não corre ao contrário
Um anjo te pegou nas mãos e
Nunca mais ter você a meu lado

Nunca mais...