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Esta página mostra meus trabalhos já publicados e alguns inéditos - contos, poesias, crônicas e imagens. Também estão aqui as versões originais das letras que fiz para a banda Dose Letal. Há trabalhos do século passado e atuais.
Olhando a sua direita, estão as obras dispostas por categoria e você pode acessá-las abaixo no "Arquivo do BLog".
Também posto aqui alguns trabalhos de divulgação de amigos ou pessoas relevantes - ver "Textos Indicados", à sua direita.
Depois está a lista de obras que participaram de concursos. Estas obras já foram citadas na lista "Obras por categoria". Apesar de algumas já merecerem reescrita, foram mantidos os originais.
No fim está uma lista de links de sites que considero que valem ser visitados.

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Amaral Peixoto, 13h47min. (Texto do curta-metragem)

Avenida Amaral Peixoto, 13h47min, Niterói, RJ. Um grito alto e estridente soa no meio da tarde quente e abafada. O formigueiro do centro da cidade pára e prende a respiração ao ver uma mulher que cai de joelhos diante de um homem alto e forte. Ele imóvel, punhos fechados frente a pequena figura que se curva em dor sobre a enorme e pontuda barriga que carrega.

João acordara cedo como todos os dias. Arrumou-se, arrancou alguns pêlos brancos que sobressaiam na barba. Sem aviso eles apareciam, mas não conseguiam se esconder na pele negra e, apesar de arrancados, teimavam sempre em voltar. Olhou o quarto, pousou a vista no pequeno, já não tão pequeno, encolhido no berço quebrado e velho que ganhara de um amigo cujo filho crescera. Viu a esposa arrumando a cama quebrada e velha que ganhara de um primo já falecido. Parou, percebeu os móveis da casa e que todos tinham história desconhecida, uma vida pregressa a qual ele invadira em algum momento, nenhum nascera com ele, nenhum saira da manjedoura da loja e dera seus primeiros passos nesta casa, e hoje sentia neles o mesmo desgaste que fazia doer suas próprias costas. Caridade não necessitada é gentileza, quando necessitada é veneno para o orgulho próprio. Bebeu o café que a esposa preparava todos os dias, beijou-a na testa, e pela primeira vez reparou nas rugas que se formavam em seu rosto. Olhou os móveis que pareciam estranhos não convidados e a si. Madeira, ferro, alumínio, ossos, músculos. De repente uma pressão no peito vem, ele fica aturdido por um instante, mas percebe que é por causa de sua nega que lhe traz o pão e – sua presença o relembra dos músculos do coração. Uma princesa. Dentro de seu pequeno vocabulário não havia palavra mais completa para o que sentia por ela. Ela era a mais linda. Era o que o acordava cedo todos os dias. Sua imagem o acompanhava enquanto colocava o tabuleiro nas costas e descia morro abaixo para o calor do asfalto. Como todos os dias.

Como se alguém apertasse o pause, todos permanecem inertes diante da cena. Jesuíno, punhos cerrados, com a cabeça inclinada na direção da pequena mulher que ajoelhada aperta desesperada o imenso ventre. Uns se afastam rápido, uns não conseguem andar, uns não sabem o que fazer. Outros não percebem o sentimento nefasto que começa a crescer dentro deles.
O mundo parecia suspenso no ar.


Raimundo acordara de uma noite cheia de sonhos. Hoje conseguiria um trabalho. Sentia profundamente isso. Preparara uma lista com os restaurantes da cidade e com as obras da prefeitura – pá ou bandeja, pouco importa, o que importa é que seria uma “vida honesta”, como prometera a sua mãe antes de vir para o Rio de Janeiro. Sua velha mãe, a pele marrom e trincada como o chão batido do sertão, cabelos grisalhos como as nuvens do litoral, cuja saudade lhe apertava a garganta, ele sonhava para ela uma velhice mais digna, fruto do que ele ganharia na dita “cidade grande”. Hei de honrar você minha mãe, dizia para si, e forçava ao escuro da memória as lembranças do tempo com o pai. As marcas que a mãe tinha no corpo, nos de seus irmãos, seu próprio dedo mindinho retorcido. Não chorou quando os guardas vieram leva-lo, e apontou o barreiro em que o pai escondia bem como os bois que roubara. Quando os guardas o algemaram e o jogaram atrás no carro, Raimundo voltou-se para dentro de casa, reuniu os irmãos pequenos, sentou-se na cabeceira da mesa e mandou que a mãe servisse o almoço.

Mais e mais pessoas param para ver o ocorrido. Maria, ajoelhada, continua a apertar a pontuda barriga como se segurasse o filho que queria rasgar o caminho para fora.
Impassível, Jesuíno continua.


José pegou o Livro e saiu apressado, tentando digerir as palavras do pastor sobre como deveria se resignar com a vida, com os outros e com seu emprego. Os patrões são homens ocupados José, de muitas responsabilidades e que sofrem muitas pressões, e você deve aprender a perdoar – A lição do Cordeiro. E José obedecia. Sempre. Obedecera durante toda uma vida sem sentir, até mesmo na tenebrosa hora em que teve de se separar dela. Não é boa moça, disseram os irmãos. Não é uma de nós. Mas quando fora falar com ela tremia sem saber a causa, e quando lhe fora pedido uma resposta, um porquê, “Você não me ama?” ele não o sabia dizer, os lábios se retorceram e antes que tentasse qualquer coisa ela se levantou e saiu porta afora. Ficou sentado, a olhar o Livro procurando algo que aliviasse sua dor e amansasse sua raiva.
José pegou o Livro e saiu apressado, tentando digerir as palavras do pastor, sobre como deveria se resignar com a vida, com os outros e consigo mesmo. Andava apressado, cozinhando a raiva em banho-maria.


Uma pequena multidão já se formara. Transeuntes param e começam a rodear os dois. Algumas vozes se levantam indignadas, enfrentando o medo que causa a figura do enorme mulato.
Jesuíno não se move.


Carlos era um bom policial. Há anos trabalhando internamente na delegacia, sempre evitou qualquer tipo de confusão, qualquer coisa que lançasse sombras sobre sua conduta, assim como qualquer dívida ou favor que pudesse ser usado para o forçar a agir fora dos seus princípios. Seu pedido de transferência para o interior do município sairia em breve, e ele ansiava por uma vida tranqüila só com ladrões de galinha e briga de vizinhos. Em seus planos de aposentaria, daqui a uns anos estaria descansando com nome e consciência limpos.

Élcio era o que se podia chamar de um policial linha-dura. Ou é ou deixa de é, e Se eu disser pula, tu pula eram seus lemas favoritos e se tornaram notórios em todas as delegacias. Seus boletins de ocorrência eram sempre obscuros, com dados conflitantes, perda de provas e muitas mortes com justificativas duvidosas.

O céu estava claro na Avenida Amaral Peixoto às 13h47min em Niterói, Rio de Janeiro.

De repente o ar incendeia e o mundo irrompe em tumulto e fúria.
Um alguém da multidão corre para a lateral esquerda do gigante mulato. Jesuíno se vira e o homem tomba antes mesmo de erguer a mão. Outro vem pela sua frente, mas um chute o arremessa de volta na mesma direção de que veio. As mãos do mulato dançam sobre a multidão, dois socos rápidos sobre um atacante na direita, uma cotovelada na esquerda e um rabo-de-arraia levam vários ao chão.
Jesuíno não pára de se mover.

“Qual o seu nome minha filha?”; “Maria”, ela responde. José olha para a mulher no chão, arrastada para um canto da calçada por três mendigas velhas a acudi-la: os cabelos suados de Maria grudados na testa, o ventre sem mais tamanho, o rosto contorcido de dor. As mãos apertam a barriga como se impedissem o filho de sair a qualquer momento sobre o papelão sujo em que estava.
Pensamentos e versículos reverberam em sua mente.

João avança sobre Jesuíno, mas, mal se aproxima, é lançado de volta, caindo sobre seu próprio tabuleiro e suas peças se espalham pelo chão. Raimundo tenta agarrar o capoeirista, mas este se vira e pega o braço do nordestino e o que segue é o som de ossos partindo. Poucos ainda estão em pé e Jesuíno não pára de se mover.

O esquálido José vê Maria no chão e o gigante Jesuíno a sua frente a devastar a tudo e a todos. Súbito, seu sapato chuta algo, e ele percebe a pedra que servia de calço para o tabuleiro de João. Sem perceber o porquê, abaixa-se e a segura com força.

Um estrondo ecoa na Avenida Amaral Peixoto. A multidão se espalha como ondas quando uma pedra cai no lago.

Carlos paralisado, com a arma na mão, olha o corpo de João que cai lentamente, com a bala alojada no crânio. A arma enferrujada disparara por acidente e acertara o camelô, que chutava o corpo caído do gigante mulato depois que este tombara com uma pedrada na parte de trás da cabeça. Élcio algema o crente e o joga junto com o nordestino de braço quebrado na traseira do camburão. Raimundo grita de dor e de protesto, mas é silenciado pela mão forte de Élcio. Carlos olha o corpo do camelô, então Élcio, com um sorriso amigável, se aproxima e diz para ele não se preocupar que o boletim de ocorrência assegurará o correto procedimento do “parceiro”.


No camburão José murmura versículos e do seu lado um sertanejo desespera ao pensar em uma velha senhora no sertão de Pernambuco que, naquele instante, sufoca em angústia. Longe dali, no Morro do Estado, uma dona de casa sente um aperto no peito e abraça seus filhos e começa a chorar sem saber por quê.



Maria, na ambulância olha Jesuíno sendo colocado no rabecão dentro de um saco preto. Seu espírito volta até a manhã daquele mesmo dia, quando marcara com ele para buscá-la na Avenida Amaral Peixoto às 14:00h. Ambos chegaram mais cedo. Ela o avistava de longe, sua figura imponente, ombros largos, corpo de atleta. E como era bonito! Algo que ele sabia bem, assim como muitas outras mulheres. Com quantas ela discutira, e quantas bateram em sua porta reclamando por ele. No começo ele pedia perdão, ela cedia, e tudo ficava bem. Mas agora nem a isso ele se dava mais ao trabalho. Todos sabiam, sentia a sombra dos vizinhos a segui-la, rindo ou lamentando por ela.
Mas ela carregava sua vingança no ventre.
Então ele se aproximou dizendo que tudo terminara, para ela pegar suas coisas e partir de sua vida. Ela reclamou, disse que ele enlouquecera, mas quando ele dissera que seu irmão confessara tudo, ela sabia que não havia mais volta. E sem aviso o mundo começou a girar, sua visão ficou turva, e, como se o bebê respondesse ao que acontecia, uma dor lancinante a acometeu, tão forte que a levou ao chão gritando. Então tudo virou treva. Quando se deu conta, algumas mulheres a levantavam do chão e a puxavam para um canto da calçada. “Qual o seu nome minha filha?”; “Maria”; “Esse cara não é homem, homem não faz o que ele fez!”; “Mas...”; “Quieta, minha filha, já vai passar”, “Mas...”; Maria, meio tonta, percebe o círculo de pessoas que começa a se fechar ao redor de Jesuíno.
Uma surra, sim, ele merecia uma surra. Mas então aquele homenzinho estranho, com a Bíblia na mão e que não tirava os olhos dela pegou uma pedra no chão e atirou em Jesuíno. Então veio o estrondo, a correria e o corpo de Jesuíno estirado no chão.

No ventre de Maria uma criança não entende a tristeza sem fim que lhe chega por meio do cordão umbilical, nem o som estranho que faz a sirene de ambulância, nem o futuro incerto e solitário que a espera.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Bela (Blues)

Ventos
vem e vão
e varrem
minha cabeça


De tudo que há de Belo
Que minha mente não esqueça
Que sua imagem brilha
Através da neblina
E ilumina o caminho
Por toda minha vida

Frágil
E quebradiça
E o medo
Que anoiteça

Quando o pavor chega
Desse mundo tão enorme
Sem família ou amigos
E entregue à própria sorte
Pois tudo que eu tinha
Perdi quando você se foi

Sem marcas
De ilusão,
Só tenho
Uma certeza

No vinho caiu água
Já não dá pra separar
Se a chuva pro céu não volta
Se o rio não corre ao contrário
Um anjo te pegou nas mãos e
Nunca mais ter você a meu lado

Nunca mais...

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Aterramento

Cai por terra
tudo que aprendi
que li
que estudei,

Ao te ver parada tabuleiro de bala cara suja roupa rasgada vendendo doce sorriso amargo olhos vazios barriga vazia


Joga-se ao vento tudo
que se prometeu
se escreveu
se discursou
palestrou

Ao te ver solto na esquina cheirando cola olhos vítreos dentes de bicho eletricidade nas artérias pulsando postura de Deus com a morte em gatilho dançando em uma de suas mãos

Cai no esquecimento
tudo o que se planejou
se projetou
não se realizou

Ao te ver leve pluma na rua pedindo esmola malabares com bola boca aberta de fome mãos suplicantes batendo no vidro do carro que sobe a parede de vidro

Cai por terra tudo que fiz
Que senti
Que amei,
Ao te ver encolhido num canto sujo
Feio,
frio,
imundo
Imóvel, rijo, parado,
Duro e mudo.


Afunda na lama -
TUDO;
ao me olhar no espelho e saber que durmo.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Texto indicado - Extratos da entrevista com o Poeta Luís Antônio Pimentel concedida ao Prof. Roberto Kahlmeyer-Mertens em 21/07/2007.[1] 2/2

K-M: Podemos dizer, então, que há influências da poesia ocidental em seus haicais. O senhor não se considera um purista, não é?
LAP: Não, não, não... eu fico naquela situação de reverência, mas, faço como o Issa, que respeitava o cânon estabelecido por Bashô, mas que discordava, por exemplo, do poeta não poder “estar dentro” do haicai. Issa achava que o poeta sempre deveria estar dentro do haicai; sempre conversando com os personagens. Veja só:

Com serenidade
no monte o monge olha
através da cerca.[1]

K-M: Sim, mas eu vejo aqui a figura de um sujeito. Um eu subjetivo que sustenta uma ação. Impressão que vejo mais forte em sua poesia como marca de uma postura ocidentalizante, e por mais que tenha ali a forma de haicai, que exista uma preocupação formal de fazer haicai...
LAP: Tenho a preocupação de cumprir algumas daquelas exigências do cânon estabelecido pelo Bashô segundo o qual, um haicai deve mostrar, direta ou indiretamente, em que estação ele se passa. Contudo ele exagerou, fixando tal poesia geograficamente em uma região do globo terráqueo. Um exemplo disso, Bashô vai exigir que o haicai aponte a época do ano (kigo). Apenas no Oriente, no Japão e mesmo na China, as estações do ano são temas obrigatórios da poesia. As estações lá são tão bem marcadas que no tempo que eu estive lá, faz cinqüenta anos passados (não sei hoje) a previsão do tempo vinha no calendário.

(...)

K-M: Alguma da literatura que levantei sobre o haicai fala da participação feminina nas letras nipônicas. Não no haicai, cujos mestres eram homens, mas antes, em poesias antigas ainda de influência chinesa. No tempo em que o senhor esteve no Japão, era percebida a participação feminina na literatura?
LAP: Nem tanto, mas o maior Clássico da literatura japonesa foi escrito por uma mulher: Murasaki Shikibu.[2] Ela foi o Camões japonês, um Camões de saias. Houve no Japão uma outra boa poetiza chamada Chio Kaga. Ela tem uma linda poesia que diz assim:

Bela campainha
floriu na corda do poço
e eu fui pedir água.[3]

Para não desenlaçar a trepadeira florida da corda do poço, ela preferiu ir pedir ao vizinho.

(...)

K-M: Recentemente, Claude Lévi-Strauss, o conhecido pensador belga (que, inclusive, regula de idade contigo, tendo hoje seus 98 anos) deu um depoimento muito lúcido, mas igualmente melancólico, no qual afirmava que o Brasil se confundia com um considerável período de sua vida e obra, mas que este, bem como o mundo no qual viveu, não existe mais, “era um outro mundo”.[4] O senhor sente algo parecido com relação ao Japão e aquele mundo que o senhor habitou?
LAP: Não sei se posso fazer esta avaliação, pois não tenho idéia de como é o Japão de hoje.
K-M: Permita-me, então, reformular a pergunta: o mundo em que o Pimentel viveu, os significados e referências daquele modo de existir são vigentes ainda hoje? A longevidade da qual o senhor goza em algum momento o apartou de um modo de existir como aquele que o senhor experimentou quando esteve no Japão aprendendo o haicai?
LAP: Pode parecer trivial o que vou dizer, mas... essas coisas todas... a própria vida é e tem de ser dinâmica. Não há vida onde há estagnação... a vida e o mundo do homem avançam, avançam, avançam e avançam sempre e nós temos que acompanhar...
K-M: Isso parece ser praticado pelo senhor, principalmente quando vemos suas relações e afinidades eletivas no meio literário e jornalístico. Falemos um pouco disso.
LAP: Com prazer.

(...)

K-M: Entre os jornalistas-literatos o senhor conheceu Sérgio Cid.
LAP: Conheci, foi meu amigo. Prefaciei o livro dele, você viu?
K-M: Sim. Retalhos de minha infância. Eu li este livro na escola na mesma época em que conheci o autor, em 1983, salvo engano.
LAP: Era muito bom repórter, grande caráter e muito talentoso, muito talentoso...
K-M: E o José Candido de Carvalho? Que tipo de relação o senhor manteve com ele?
LAP: O José Candido vinha todo dia aqui à Livraria Ideal; [5] participava desses nossos encontros e também era amigo do Mônaco. Uma figura extraordinária! Tenho do José Candido uma lembrança muito feliz...
(...)

K-M: Sabendo de suas controvertidas opiniões sobre alguns dos autores que já são lugar comum no meio acadêmico, gostaria que o senhor falasse um pouco da discordância, por exemplo, da avaliação que se faz do Machado de Assis como o maior escritor em língua portuguesa ao lado de Eça de Queiroz. O senhor poderia dissertar um pouco sobre isso?
LAP: Naturalmente. Discordo desta avaliação após muito ruminar. Penso que o Machado de Assis, como a maioria dos que vivem sob um domínio cultural, no caso o europeu, acabava sendo mais europeu que os ingleses e franceses. De forma que ele parece não querer, nem de longe, ligação com o popular brasileiro. Então, vivendo no Brasil e sendo um cultor da língua, um escritor erudito, ele jamais se ocupou em falar do Rio de Janeiro que via por sua janela. (Dá a impressão que em sua casa não tinha janelas). Machado não viu uma planta de nossa flora, ele não viu o carnaval, ele não viu o futebol, não viu a revolta da vacina, a rebelião da chibata, não viu nada! Ele não viu nada do Brasil! O sujeito interessado em conhecer algo do Brasil ao ler o Machado de Assis, como escritor brasileiro, fica em jejum. Não é possível que um autor fique tão alheio assim! Neste ponto, prefiro o Lima Barreto. E não estou só neste parecer, também o “Velho Graça”, meu amigo Graciliano Ramos, pensava assim. Vou contar uma história, veja você: Certa vez, encontrei na rua um colega que era secretário do Diário de Notícias e ele me disse: “― Pimentel! Você por aqui!... Não quer dar um pulinho ali na livraria para abraçar o Velho Graça!?” (Graciliano fazia ponto numa pequena livraria ali no centro do Rio). Daí, fomos lá e conversávamos com o Graça, quando chegou o Machado, aquele que é autor de A morte da porta-estandarte...
K-M: Aníbal Machado.
LAP: Isso! Aníbal Machado, que era um gozador, pícaro, um provocador e disse: “― Ô Graça! Você já soube que está sendo considerado o novo Machado de Assis? Como você se sente?” Em resposta: “― Me sinto muito mal. Pois o Machado de Assis não sabe fazer diálogos, coisa que até o José Lins sabe.” Quer dizer, ainda sobrou uma farpa para o José Lins do Rêgo, (risos) presenciei isso...
[1] Nodokasa ya/ kakima wo nozoku/ yama no sô.
[2] Murasaki Shikibu (973-1014) pseudônimo de uma poetisa, novelista e serva da corte japonesa na Era Heian, cujo nome verdadeiro é desconhecido. Escreveu no período em que a linguagem oficial ainda era a chinesa; seus diários relatam que por vontade de sua mãe, recebeu uma educação como a dos homens, o que era contrário aos costumes da corte. Murasaki é autora dos Contos de Genji, e de uma compilação que traz 128 de seus versos, publicados postumamente.
[3] Asagao ni/ tsurube torarete/morai mizu.
[4] LÉVI-STRAUSS, Paixão pelo Brasil, 2007. pp. 40-43.
[5] Tradicional livraria fundada há mais de 70 anos em Niterói situada no assim chamado Calçadão da Cultura, que é ponto de encontro de literatos, artistas e intelectuais das diversas Academias de Letras e do Grupo Mônaco de Cultura. Carlos Silvestre Mônaco é livreiro, proprietário da Livraria Ideal e promotor cultural; tendo sido premiado como intelectual do ano em 2006 por indicação das diversas Academias de Letras do Rio de Janeiro.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Texto indicado - Extratos da entrevista com o Poeta Luís Antônio Pimentel concedida ao Prof. Roberto Kahlmeyer-Mertens em 21/07/2007.[1] 1/2

ROBERTO KAHLMEYER-MERTENS: No intuito de ambientar nossa conversa sobre o haicai, sugeriria que o senhor falasse um pouco do período em que morou no Japão.
LUÍS ANTÔNIO PIMENTEL:[2] É com prazer que falarei sobre este período. Eu iria para lá e não voltaria mais para o Brasil, pois estávamos numa época turbulenta, era o Estado novo. Getúlio Vargas amansava o terreno para a ditadura, nessa marcha os integralistas ameaçavam tomar o poder com um golpe que estava sendo preparado e se dizia que: “ ― Cabeças voariam sobre cabeças”. Uma das cabeças que estava para voar era a minha, que combatia o integralismo.[3] Eu tinha amigos dentro do integralismo que me informavam: “―Você é já marcado. Gosto de você, você é amigo e é dos meus, mas não posso lhe defender se a coisa estourar, pois sabem que você é do PC e ataca de frente o integralismo.” Foi quando tive a chance de uma bolsa de estudos de dois anos no Japão. Assim, saí daqui em 1937, quando os integralistas ameaçavam a famosa passeata dos cem mil; na época se passava nas praças e se ouvia em todo lado: “― Anauê!, anauê!”.[4] Pois bem... cheguei no porto de Yokohama no dia 02 de maio e no Japão fui locutor da rádio de Tokyo em língua portuguesa em ondas curtas que transmitia para o mundo inteiro.
K-M: Sei.
LAP: Em 27 de novembro daquele ano, Getúlio dava um golpe inibindo as pretensões dos integralistas. Daí eu pensei comigo: “―Saí de uma ditadura, para cair em outra”. Assim fui ficando pelo Japão. Pois mesmo que este não fosse uma república federativa, não fosse um país socialista, era um país civilizado e eu era persona gratissima lá. (Posso dizer que tinha mais popularidade em Tokyo do que tenho em Niterói). Eu brincava com os japoneses dizendo assim: “―Eu sou a numerosa colônia do Brasil!”, porque era um brasileiro no Japão, contra um milhão de japoneses no Brasil. Eu era um para um milhão... (risos).
K-M: Poderíamos dizer que este período de afastamento do Brasil foi um auto-exílio?
LAP: Foi um exílio voluntário, motivado por um espírito de defesa. Os integralistas cresciam dia a dia, fardados pela rua em camisas verdes falavam em outra noite de São Bartolomeu. Tendo a chance, parti para o Japão.
K-M: O senhor é apontado como um dos responsáveis pela recepção do gênero haicai no Brasil, ao lado de Olga Savary, Helena Kolody e, mesmo, o Guilherme de Almeida, um pouco antes. Como foi seu primeiro contato com a poesia haicai?
LAP: Eu gostaria de registrar isso, pois há uma imprecisão aí. Alguns dizem que a primeira notícia que se tem do haicai no Brasil é dada no livro Miçangas de Afrânio Peixoto.[5] Bom, tenho o livro e vou trazer para você ver... nem de longe se fala de haicai, tampouco de poesia japonesa. A primeira vez que tive contato com haicai eu tinha 14 ou 15 anos, foi na primeira edição em língua portuguesa de O tesouro da juventude. Se você tiver chance de consultar esta edição verá lá haicais traduzidos por Manuel Bandeira, mas todos com “pé quebrado”[6]... Ali, Bandeira mostrava o haicai mas não explicava o que era, apenas apresentava e não havia um estudo sobre ele. Daí, quando fui para o Japão, com meus vinte e cinco anos (dez anos depois daquele primeiro contato) tive a sorte de conhecer um grande poeta japonês que tinha estado no Brasil com o pai, que era Chargé d’affaires.[7] (Na época em que nosso país ainda não tinha representante diplomático, esse cargo seria o de um “encarregado de negócios”, como se fosse um Cônsul). Seu nome era Horiguchi Daigako (que significa “Grande escola”, “Universidade” em japonês) e, conversando, ele me mostrou, explicou o que era o haicai. Eu disse que não saberia fazer haicais, pois as palavras japonesas eram pequenas, quase monossilábicas como as do chinês. Daí, ele interessado em me ensinar, disse: “ ―Pimentel, como você tem coragem de me dizer isso?! Veja só na minha língua a palavra eu: watakushi (4 sílabas); a palavra. você: wanatá (3 sílabas). É uma língua em que existe sinônimo para pronomes, e pronomes de tratamento cada um para um caso específico. Então, não me venha falar em dificuldade”. Foi com ele que eu aprendi um pouco sobre a história do haicai, suas normas... foi com ele que eu soube que havia os mestres do haicai e com ele conheci a obra de Bashô. (Eu algum dia ainda vou escrever a biografia do Bashô, com os detalhes da vida dele que foi um sujeito extraordinário).[8]

(...)


K-M: Após isto tudo, podemos dizer que foi preciso o senhor ir ao Japão ter essas vivências para passar a fazer haicai não só lá, mas também aqui no Brasil. O que nos permite afirmar que mais que recepção, seu trabalho se serve da fonte japonesa do haicai.
LAP: Da fonte, sim.

(...)
K-M: Tenho observado, Pimentel, nas leituras que venho fazendo de suas poesias e também nos poemas de Bashô e de Issa...[9]
LAP: Issa vem um século depois.
K-M: Correto, mas podemos entender uma filiação entre ambos.
LAP: Sim. Podemos, podemos...
K-M: Observo principalmente em Bashô elementos diferentes de sua poesia haicai. Vejo uma poesia sem qualquer tipo de afecção subjetiva, ao contrário do que se vê em alguns de seus haicais, nos quais se presencia a figura do poeta na condição de um eu lírico. É o poeta que canta a beleza da boca da mulher; do corpo da musa; da emoção da lágrima, na metáfora do pingo de orvalho. E outro elemento que identifico freqüentemente: características e figuras de linguagem que em muito lembram a estética romântica e a simbolista. Por exemplo, no segundo caso, o místico, ícones do cristianismo e a presença do branco como cor mencionada predominantemente nas poesias. Isso seria o caso de sua poesia ou traço do haicai em geral?
LAP: Alguns destes símbolos estão muito ligados ao sentimento búdico, outros são transgressões mesmo. De certo modo, essas já se vêem na poesia do Issa. Ele se distancia da poesia de Bashô como também venho me rebelando. Veja só, introduzi o haicai onomástico, que Bashô não faria; o haicai erótico, que está fora do cânon de Bashô; o haicai engajado, panfletário, que Bashô não faria, pois para ela o haicai tem que se referir aos fenômenos da natureza e das suas coisas belas e suaves, nunca as coisas penosas e tristes.

(...)

[1] Confira texto integral em KAHLMEYER-MERTENS, R.S. Diálogo com Luís Antônio Pimentel. In: Verdade-Metafísica- Poesia. Niterói: Nitpress, 2007 (no prelo).
[2] Luís Antônio Pimentel (1912 - ): Poeta, professor e memorialista nascido em Miracema/RJ. Tendo sido aluno bolsista em intercâmbio no Japão, residiu lá entre os anos de 1937-42, familiarizando-se com o haicai ao ter contato com autoridades como Hagiwara Sakutarô e Takamura Kôtarô. Pimentel é um dos precursores do haicai no Brasil, responsável pela divulgação desse estilo de poesia ao lado de Olga Savary e Helena Kolody. Tem parte na cunhagem definitiva do termo “haicai” em língua portuguesa quando, estudante da faculdade de filosofia da Universidade do Brasil, encaminhou a Aurélio Buarque de Holanda, por intermédio do gramático Celso Cunha, o pedido de dicionarização, evitando que o termo se dispersasse em outras transliterações como hai-cai, hai-kai, haikai, haiku, hai-ku e hokku. O autor reconhece ter se permitido inovar o haicai ao tratar de temas tropicais, criando também o haicai erótico, o engajado politicamente e o étnico. Contudo, essas pequenas transgressões não corrompem o cânon estético inaugurado por Matsuo Bashô, como a rigorosa métrica e a exigência da indicação da estação do ano (Kisetsu) e dos fenômenos da natureza. Sua vasta obra literária, conta com livros como: Contos do velho Nipon (1940), Tankas e haicais (1953), Cem haicais eróticos e um soneto de amor nipônico (2004).
[3] Corrente política tradicionalista de vulto no início do século XX inspirada nos princípios Deus, pátria e família, tendo Plínio Salgado (1895 -1975) como principal articulador no Brasil.
[4] Saudação dos integralistas em língua tupi que significa “Você é meu irmão”.
[5] Cf:. PEIXOTO, Miçangas , 1977.
[6] Chama-se pé quebrado composições que não respeitam a rigorosa métrica do haicai.
[7] Citado em francês por Luís Antônio Pimentel.
[8] Jinskikiro Matsuo Munefusa (1644-1694). Nascido em uma família de samurais, Bashô (como era chamado) foi poeta e bonzo budista. É apresentado como o primeiro grande mestre do haicai, tendo estabelecido seu cânon tradicionalmente japonês. Peregrinou pelo Japão divulgando essa arte associada ao budismo, mas seus poemas só foram compilados postumamente por dois de seus contemporâneos, Hattori Doho (1657-1730) e Mukai Kyorai (1651-1704).
[9] Yataro Kobayashi (1763-1827), dito Issa. Poeta, filhos de camponeses, que e ao se dedicar ao haicai teria introduzido inovações técnicas no haicai, superado o próprio Bashô tanto em inspiração quanto em popularidade.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Manchete

O dia estava novo, fresco, como a manteiga amolecendo em cima da mesa, que não foi guardada depois do café, mas esquecida ali quando se ouviram batidas na janela.

Ela era manhosa, como aqueles gatos de armazém, deitados em cima das sacas de arroz – mas que quando menos se espera te arranham.

E a arma disparou três vezes – e ninguém ouviu. Porque quando você se acostuma com um algo repetitivo, todo dia , toda hora, toda uma vida, não se o percebe mais. Como quem mora perto de aeroporto e se acostuma ao som dos aviões, como a adolescente para quem as palavras da mãe são vazias mas a intenção dos conselhos é dada pelo tom de voz.

Oito pessoas se atrasaram para o serviço.

Dilma viu tudo. Mas não irá falar. A desconfiança da polícia, o não querer entrar em confusão, o que dirá a vizinhança, ela tem mais o que fazer, afinal é só mais (ou menos) um (ou uma ) - tanto faz, o tanque tá cheio de roupa, não se ganha nada com isso, tem de aturar a patroa chata metida a besta e aqueles filhos mala. Azar.

A saia levantada, a meia-calça rasgada (com os dentes), a saliva escorreu e umedeceu de leve a parte interna das coxas. E o sorriso não desapareceu da boca mesmo depois de

A janela do barraco vivia trancada por causa da poeira. Hoje estava aberta. Assim como o ferrolho da porta.

Duque exasperava mas não conseguia se soltar. Assistia a tudo impotente, mexia-se, grunhia; sentia a pressão contra seus músculos do pescoço, a tração de seus ossos, sua pele prestes a rasgar com o atrito. Então, de repente, ele sentiu a corda que prendia a coleira ao muro de chapisco romper.


E um jornal menor da cidade diz: “CÃO VINGADOR! Motorista de van esquece celular em casa e quando volta para pegá-lo encontra a mulher com o vizinho. O amante mata o marido à bala mas tem a garganta estraçalhada por seu cachorro.”

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Texto Indicado - Excertos do livro Verdade-Metafísca-Poesia de Roberto Kahlmeyer-Mertens - PARTE 2/2

Essa poesia não é apenas um jogo de palavras em busca da estética, é recordação de uma dimensão esquecida que emerge como das brumas após ser evocada. Esquecidos dessa dinâmica, tem-se cotidianamente uma apreensão enevoada dessas instâncias. Dependendo de alguns poucos que, atentos ao modo de ser da realidade-verdade, efetuam tal resgate por meio de sua produção (poesis), ao despertarem novamente à experiência acenando aos demais como essa se daria. Com efeito, o poeta é quem ― ao falar ― limpa o significado das palavras devolvendo viço à linguagem; noticiando (como no poema) a alvorada da realidade-verdade que acontece em cada instante. O poeta fala para que se intua a morada na qual o homem se reúne, habita e se faz, melhor mirante dessa realidade; é quem ― tendo maior clareza desse ethos ― relata sua localização e o que nele ocorre, fazendo da poesia relato aos esquecidos.[1] Assim, poesia é relato.

(...)

O contato com o mundo ocidental apresentou necessidades que até então o japonês não tinha. Promoveu a urgência de desenvolver vocabulário e gramática para dizer o que era experiência completamente exótica àquele. Nesse período, vê-se nas universidades européias, sobretudo nas de Letras e de Filosofia, grande procura de acadêmicos japoneses ávidos de tomar conhecimento daquele modo de pensar que não se contenta com a imediatez da coisa e se lança ao perscrutar a realidade-verdade.[2] Doravante, a distinção entre Ocidente e Oriente passaria a não ser mais uma convenção geográfica das fronteiras entre os hemisférios do globo, Ocidente passa a ser a denominação de uma visão de mundo que acomete outra e que faz com que encontremos também na segunda a preocupação em pensar o universal de todas as coisas. Essa preocupação parece refletir no Oriente quando presenciamos questionamentos formulados no interior de haicais, como Pimentel evoca:

Que é um haicai?
É o cintilar das estrelas
num pingo de orvalho.[3]

O poema traz marcas do Ocidente não apenas por ter sido criado por um ocidental. É ocidental embora se caracterize formalmente como um haicai japonês. Na formulação o que é...? fica expresso o modo de perguntar desenvolvido pelos gregos e (embora a primeira estrofe traga uma pergunta que no contexto do poema seria retórica e a saída poética do haicai não tenha a intenção de respondê-la) é essa a fórmula que Platão e Aristóteles se valeram em suas investigações. Forma que ao longo de muitos séculos encaminhou o pensamento aos rincões da metafísica; sendo corpo estranho num haicai ao denunciar uma postura que não a serena e contemplativa dos orientais.

[1] Heidegger em um ensaio sobre a elegia Pão e vinho, do poeta Friedrich Hölderlin, pergunta: E para que poetas em tempo de penúria? A resposta é dada pelo próprio Heidegger quando afirma que poetas seguem um sentido perdido, buscando nas palavras um vigor esquecido; farejando o sentido esquecido. Os poetas provocam os demais homens a recordem que um dia houve sentido e que este pode ser retomado. (HEIDEGGER, op. cit., 1958) Daí o dizer poético e o filosófico seriam dois modos de recordar, a partir da imediatez da palavra, de mundos cujo sentido bateu em retirada. Também Blanchot, em sentido aproximado, indica o poeta como quem ouviu a fala das origens, se fazendo intérprete e mediador dela. O poeta não seria um escrevinhador, um “criador”, tal como entendido de maneira banal. Apenas atento ao sentido “ele pode fazer brotar a pura palavra do começo” (BLANCHOT, 1987, p. 29).
[2] Em contrapartida, também o Oriente na mesma época foi responsável por uma influência fascinante em toda a Europa. Na Alemanha, o budismo se tornava tema de interesse de filósofos como Schopenhauer (1788-1860). Na França (país que ao retomou relações culturais e de mercado com o Japão), introduziu-se a arte japonesa e sua poesia. Relata-se que gravuras e tecidos japoneses eram possíveis de se adquirir por preços módicos nas ruas de Paris, as damas da sociedade trocavam seus veludos e brocados por quimonos de seda. Além dos poetas e literatos, pintores como Gauguin (1848-1903) e Van Gogh (1853-1890) reproduziam gravuras orientais, encantados pela lucidez concentrada que os japoneses tinham do mundo e de seus fenômenos mais imediatos. Van Gogh, de seu gênio, teria identificado isso, como se constata em seu depoimento: “Invejo os japoneses pela extraordinária, límpida claridade que têm todos os seus trabalhos. Nunca é aborrecido e nunca parece ser feito muito à pressa. É tão simples como respirar, e desenhar uma figura com um par de traços seguros, com uma leveza, como se fora assim tão simples...”. (WALTHER, 1990. p. 25).
[3] PIMENTEL, 2004, p.256.

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Soneto à tempestade

Nuvens que chegam anunciam o advento
A luz sussura um breve adeus
E quando me vejo por seus olhos chovendo
A noite escurece os seus e os meus

Sua boca troveja palavras em fúria
Vento carrega minha morte em anil
Que o meu medo de ti tem razão de existir
Pois só você sabe como me ferir

E você o faz sem o menor hesitar
Alvorada que traga minha alma que cai
Ao escuro da noite aonde ela se esvai

Sua visão ante mim, me faz perceber
Talvez não vá sobreviver
Até a hora do Sol nascer

sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Texto Indicado - Excertos do livro Verdade-Metafísca-Poesia de Roberto Kahlmeyer-Mertens - PARTE 1/2

Como dito antes, aproveito esse espaço também para divulgar o que de relevante acho, não só o que seja de minha autoria. Abaixo temos trechos de um livro que será apresentado na próxima Bienal, divididos em dois blocos, sendo esta o primeiro e o segundo vem em breve. Como é um material que ainda será lançado, curtam a pré-estréia !

Excertos do livro Verdade-Metafísca-Poesia de Roberto Kahlmeyer-Mertens - PARTE 1/2

O ensaio em nosso livro tem por objetivo especular sobre a relação entre os pensamentos ocidental e oriental, a partir das noções de verdade, metafísica e poesia. Toma por ponto de partida a poesia haicai. Cumprindo a tarefa de uma problematização desses elementos e visando a contribuir para o preenchimento da lacuna existente entre os modos de pensar acima mencionados. Da mesma maneira, retoma o haicai como tema digno de consideração da Filosofia. (...) O escrito conta com três tópicos, cada qual reservado aos conceitos anunciados no título. Ao final, nos convencemos de que o haicai é terreno fértil ao pensar, para além das suas circunstâncias geográfico-culturais, entretanto, nossos resultados não se furtam a críticas ou se consideram palavra final.
Em nossa pesquisa, o acaso por vezes conspirou favoravelmente, para fazer com que se tornassem disponíveis livros e periódicos que permitiam pensar a implicação de Heidegger com o Oriente, com sua poesia e linguagem. Foi também assim que a poesia haicai veio à pauta de nossas discussões, tendo como pano de fundo a questão da verdade e da metafísica.
Entre todos os diálogos, o mais essencial foi o com o Poeta brasileiro Luís Antônio Pimentel. Seu conhecimento da cultura japonesa e a possibilidade de sua poesia conjugar todas as questões relativas ao encontro entre os pensamentos ocidental e o oriental, mais que testemunhar o intercâmbio entre essas, foram motivos suficientemente persuasivos para adotarmos seus haicais como ponto de partida para nossas reflexões de filosofia.


(...)


São incomensuráveis as controvérsias relativas à interlocução entre os pensamentos oriental e ocidental. Se por um lado temos a tentativa de legitimar uma dita filosofia oriental que aparece como o esforço de alguns poucos entusiastas pelo assunto; de outro, a comunidade acadêmica, em sua maioria, não aprecia tais investidas mantendo-se irredutível quanto à filosofia ser um fenômeno ocidental. Para essa, não existiria a filosofia fora da perspectiva européia, sendo qualquer manifestação genuinamente filosófica derivada desse modo de pensar. Se essas duas posições divergem nesses pontos, parecem concordar em ser arriscado qualquer tipo de tentativa de associação do pensamento oriental ao ocidental, ou de pensar o primeiro com os recursos do outro, sob o risco de uma tradução já alterar a essência e qualquer compreensão pretendidas, por se valer de seu vocabulário e gramática. Nesse cenário, ainda existem duas formas de nos portar diante dos temas e das questões fomentados pelo Oriente: ou bem silenciar, preterindo-o como pensamento ininteligível aos ocidentais e, por isso mesmo, indigno de ser chamado de filosofia; ou assumir o risco de pensar filosoficamente seus temas, apropriando-se de suas questões sem o pudor de tomá-las sob a única ótica que temos à disposição. A bem da verdade, do segundo modo, estaríamos fazendo filosofia à maneira do Ocidente (descarte-se aqui a intenção de uma filosofia oriental); apenas tomando o Oriente como ponto de partida.
Cientes disso, minimizar a discrepância seria adotar o melhor ponto do Oriente para começar nosso argumento. Para nossa aproximação, perguntaríamos o que aquilo que se convencionou chamar de Oriente poderia servir de solo ao nosso exercício de pensamento. Escapando da indiferença do arbítrio, presumimos que a melhor marca daquele mundo é a língua, dimensão continente de toda sua conjuntura, seu espaço de realização, compreensões, interpretações, asserções discursivas, referências, sinais e propósitos. Na língua, esses se depositam expressando com o que lidamos e seus determinados modos. Todavia, dentre os modos de expressão de um idioma, talvez o mais privilegiado seja o discurso poético. Parece ser evidente aos antigos que a poesia e o espírito humano são fenômenos indissociáveis e que (ainda que nunca tenhamos escrito uma única letra de poesia ao longo de uma existência) relata a própria vida do espírito, entre nascimento e morte, dando-se no intervalo entre essas duas instâncias inefáveis. Destarte, a poesia é relato de um mundo e de seus significados, indicadores do homem em sua realização.
Soma-se, assim, diversos motivos para tratarmos da poesia. Mas como pensar a poesia aqui? Seria o caso de apresentar notas sobre a gênese e história desse gênero? Ou quem sabe ceder à sedução de fazer crítica literária? Parece ser nosso texto fomentado pela necessidade de pensar o Ocidente aproximando-o (contrapondo-o) ao Oriente a partir de sua poesia, e pela urgência de preencher algum hiato no tocante às implicações filosóficas do pensamento oriental com sua poética; quem sabe em uma modalidade típica como a poesia haicai.[1]
[1] A viabilidade da utilização dos haicais como ponto de partida de endossa no seguinte parecer de Ute Guzzoni: “Sem dúvida, a antiga sabedoria Zen e a poesia dos haicais (...) não são filosofia no sentido usual da palavra. Contudo, podemos começar algo com elas. (...) Em nenhum outro lugar como no haicai japonês a admiração do que a cada vez é e não é encontrou lugar tão digno, seguro, e ao mesmo tempo tão singelo”. (GUZZONI, 2002, p. 76).

Confira texto integral em KAHLMEYER-MERTENS, R.S. Verdade-Metafísica- Poesia: Um ensaio de filosofia sobre os haicais de Luís Antônio Pimentel. Niterói: Nitpress, 2007 (no prelo).

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Faca de 2 gumes - Concurso Literário ALLMED

Corte 1:

Um dia mais cedo. Raro chegar em casa um dia mais cedo. Será que Sônia estaria espiando pelo cortina, para me esperar à porta? Não, está muito cedo. E ela achando que eu não via seus verdes olhos pelo vidro - mas não direi isto.


Desta vez chego em casa e vejo a cortina inerte na janela. Mas quando abro a porta qual minha surpresa: Sônia em pé com uma camisola transparente e duas taças de Chamapanha na mão. Ela está demais... Os cabelos desarvorados, a boca vermelha e o perfume que adoro. A luz por detrás realça-lhe a silhueta de quadris largos e pernas grossas. Tão lânguida era e estava, que só de vê-la cheguei ao cúmulo da excitação.


- É para mim este Champanhe ?
- E para quem mais ? - respondeu devagar
- Então, que tal um brinde ?
- A nós.


Viramos o champanhe de um só gole. Então ela parou, olhou direto em meus olhos e virou bruscamente para a cozinha. Permaneço estático e em segundos ela volta à sala com uma faca na mão. Vem devagar até mim e manda tirar o paletó. Eu tiro. Ela desabotoa minha camisa com uma mão enquanto com a outra toca a faca em meu rosto. Sinto o frio metal sobre minha face, minha boca e meus olhos fechados. Então de repente ela rasga, corta minha camisa fazendo uma tira bem larga e me venda os olhos. Puxa-me pelo cinto escada acima aos beijos e mordidas enquanto grita meu nome. Em um momento sinto-a me empurrando, e mal meu corpo cai na cama suas mãos hábeis tiram o que resta de minha roupa. Como uma onda, vira meu corpo sobre o seu e delicadamente. Sua voz se eleva mais que o mundo e seu corpo se mexe como nunca - e nunca a vi assim, nunca estive assim, e de súbito sinto-me tocar o céu, virar nuvem e dissipar-me.



Corte 2:


Humm, adoro este champanhe. Espero que ele não esteja cansado pois eu não estou. Ei, que barulho é ess... Não, a PORTA!!!

Corro para a porta e fico petrificada ao vê-la abrir. Ele entra e quando me vê assume a mesma expressão com que eu olhava Jonas há menos de dez minutos.


- É para mim este Champanhe ? pergunta
- E para quem mais ? Tenho de manter a calma. Droga, não era hora para ter de olhar pela janela.
- Então, que tal um brinde ?
- A nós. E levamos os copos à boca.



Pense. Apesar de tudo você o ama. Não pode perdê-lo. Já sinto o champanhe passar sobre minha língua e molhar a garganta. Ele não pode ver Jonas. Não pode vê-lo. Ele, ...ISSO! - Ele não pode VER!



Desço o copo e olho em seus olhos. Já sei o que fazer.

Viro para a cozinha. Abro a gaveta, pego a faca de carne e volto à sala. "Tire o paletó" ordeno. Me aproximo devagar e com a face rente a sua vejo o quão belo é meu marido. Desabotôo sua camisa lentamente e passo a fria faca em seu rosto. Ela desliza sobre sua face, seu queixo, sua boca, enquanto minha mão a imita em seu peito másculo. A faca sobe por seu nariz e quando toca suas pálpebras sinto um arrepio e me lembro do que tenho de fazer.

Pego sua camisa e rasgo. Faço uma tira bem grande e vendo seus olhos. "Ele não vai vê-lo". Pego-o pelo cinto e o arrasto escada acima enquanto beijo, lambo e mordo seu corpo rijo. Relembro Jonas e grito o nome de meu marido, para que ele ouça. Entro no quarto e o vejo nu, em pé, ao lado da cama. Faço um sinal para que saia enquanto jogo Mauro sobre os lençóis. Pulo sobre ele e arranco-lhe as roupas ao mesmo tempo que Jonas cata as suas e ruma para a porta. Viro Mauro sobre mim e me assusto - Jonas está lá, parado ao portal, braços cruzados, roupas no chão. Mauro me beija e acaricia, me excitando como sempre soube. Jonas se mexe e percebo que vem em minha direção. Ajoelha ao lado da cama e segura minha mão com o rosto perto do meu. Sinto sua respiração. Mauro se move e enrijece e eu já não sei o que está acontecendo.

Jonas beija minha mão. Eu grito e ele aperta mais forte - então tudo some. Quando meus olhos desembaçam vejo Jonas levantando, pegando suas roupas e partindo, enquanto meu marido respira fundo sobre meu ombro e percebe que não consegue tirar o nó cego de sua venda.

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Sertanias, Romarias e Asas-Brancas em Aquarela - Concurso Homenagem a Graciliano Ramos


"Pinto a dor, a alegria, o trabalho, a miséria, o meu povom enfim."
Cândido Portinari



E Fabiano acordou. Porque Fabiano queria viver.
Recolheu sua família e caminhou.
Porque Fabiano queria viver.


Durante o sono da noite, tivera uma sensação. Um sonho, ele achara, pois havia muito tempo eles se perderam e não encontravam o caminho de casa através do sertão. Havia um lugar bom, para ele, sua esposa e filhos. Até para Baleia. Tinha de haver. No sonho, havia sinais. Era só segui-los. Em duas palavras, tentou, entre dentes, explicar à família o ocorrido, mas desistiu. Não saberia. Então silenciou. E eles o seguiam como sempre.

O sertão passava numa triste solidão. O sol alto castigava os retirantes, dúvidas escorriam da pele junto com o suor, sobre se aquela era mesmo a direção certa. Fabiano ainda não via o sonho. Não era uma plantação coberta pelo verde dos olhos de sua esposa - era o vermelho de sua barba cobrindo o chão de baro, o vermelho lhe tomando os olhos e a garganta num braseiro sem tamanho.

Tudo era pó e desolação.

Horas em silêncio. Longe muitas léguas da falta d`água que lhe tomara o gado, da sede que levara seu alazão, Fabiano, quando olhava a família, já achava que isso era uma sombra que o esperava de tocaia para lhe levar o pouco que ainda tinha - os poucos a seu lado. Falta d`água, falta de vida, ela o seguira até aqui. E havia horas o pequeno no colo da mãe não abria os olhos.

De repente, viram um grupo ao longe. Aproximaram-se. No encontro, por um suspiro, tudo pareceu imóvel.

Era um quadro belo e comum em tom azul: dois homens, uma madeira comprida indo do ombro de um ao do outro, com um lençol preso pelas pontas, carregando um volume que parecia leve... leve como o peso de todos os que vivem no sertão. Leve como a sede, leve como a fome. duas mulheres ajoelhadas: uma à frente do grupo rezava, a outra em frente ao lençol estendia os braços aos céus em desespero, como que a pedir, como que a chamar - mas nenhuma voz veio, nenhuma voz falou. Pouco se fala em um Enterro na Rede. Só súplicas e preces.

Então o suspiro passou. Como que quase sem querer, ela recolheu os braços, levantou e virou os olhos para o sul. Parou de chorar. Seu rosto foi assumindo a serenidade do azul da paisagem. Ela sorriu e lembrou... Quem amara não ia se levantar da rede, sua alcova e cova - mas ela não sentia mais dor. Ergueu a cabeça, olhou para a família de Fabiano. Seu braço se ergueu lento apontando o sul, pois agora ela lembrara o que esquecera. O filho mais velho a olhava, e ela retribuiu o olhar, então Fabiano também entendeu - mesmo que não soubesse explicar sobre um lugar aonde os mortos não voltam mas em que não se sente dor por eles. Bastava seguir o olhar. O filho pequeno se aninhou no colo da mãe e andaram.

Nos Enterros na Rede não se fala muito. Nem mesmo Deus.

Baleia demorou a chegar junto à família, pois durante o quadro que se dera estava ao longe como um senhor de idade, que ninguém notara, sentado diante de uma tela com vários potes de tinta junto a si. Na mão, uma vareta com o que parecia um tufo de cabelos na ponta.

Caíra a noite.

Subira o sol, caíra a noite ao fim do dia. E assim se fez por mais dois dias.

Fabiano, sentado, olhava a esposa de joelhos. Filha dessa vida a sol comprido, rezava. Não, tentava. Como ela não sabia rezar, tudo o que oferecia a Nossa Senhora da Aparecida era o olhar e as lágrimas que esperava rolarem até a boca para não desperdiçar água. Fabiano não rezava. Nem esperava a sorte. Se ela existia, ele não sabia - nunca a vira pelo sertão, e se ela já estivera aqui, fugira pra capital. Ou pro lugar esperado pra onde ele ia.

Entretanto, fosse a tal da sorte de volta, fosse Nossa Senhora, que entende uma prece sem falas, ao final da noite um ronco surdo acordou a todos.

Agora se anda mais rápido, como se não houvesse dor, sede ou fome. Já faz três noites que pro sul relampeia. Não há música mais linda que o ronco do trovão. Andam. Então chega uma cerca.

Entram pelo porteira devagar. É o medo e sua irmã desilusão que tentam segurar seus passos. Mas seus narizes vão correndo - cheiro de terra molhada, mato verde, esperança. E os ouvidos engaiolam uma asa-branca a cantar que é uma beleza.

A plantação toma até onde a vista alcança. Não há jagunços vigiando a lavoura. Quem está aqui não precisa ser vigiado. Quem está aqui respeita a lavoura, a si, a vida, a morte e aquele a seu lado. Todos trabalham, há trabalho pra todos. Todos aram a terra, há terra pra todos. E todos comem.

A chuva que se foi deixa de lembrança as cores mais vivas nos campos. São tantas cores, tantos tons difeerntes, que Fabiano quase pperde o equilíbrio. Por um minuto, olha para si e ao redor. Esquálido e sujo, envergonha-se do que é, do que a vida fez de si, de não merecer estar aqui, e um ímpeto de correr lhe toma as pernas. Mas antes uma mão o segura pelo braço e o traz para perto de todos. Pois o pecado que carregamos é o de não acreditar que se pode.

A mão que trouxe Fabiano tem um pincel em sua companheira. Baleia corre para junto do dono das mãos, ganha um afago delas e senta-se a seu lado. Fabiano é levado até vários retângulos de madeira, e neles vê espelhadas todas as cenas à sua frente - Crianças Brincando, homens colhendo O Café, mulheres preparando um Casamento na Roça para o fim da tarde.

O pintor pede a Fabiano e sua família que juntem a um senhor, uma mulher e seu bebê e mais dois garotos que acabam de chegar. Quer todos Os Retirantes juntos para fazer um quadro. Um quadro sobre um lugar que lhes pertence. Como pertence a todos. Um lugar onde o céu azul não constrasta com as aves negras ao alto.

terça-feira, 17 de julho de 2007

Ode aos derrotados / Canto dos vencidos

só durmo mesmo quase à beira de um desmaio
a Vida passa e eu fico no seu rastro
na corda-bamba dia a dia quase caio
seu toque é frio, me sufoca seu abraço

porque ninguém louva o derrotado
a História não é feita por vencidos
feio, gordo, pobre, anão, aleijado
nessa Terra ninguém louva o mal-fadado

E cada um tem a sua maneira de enfrentar a dor
a sua maneira de manter a fé, de se manter em pé
de fazer valer seu viver

Vc se esquece que não se chora de alegria
mas que o Sol nasce e seca o choro a cada dia
Seja como for vc tem de levantar
só pra tentar - sobreviver.

Minha Dama de Negro

Vejo ansioso sua figura chegar
Manto negro, esbelta,

o frio corta o ar.
Toma minha mão com todo apreço
e ando na sombra do Seu Vale
sem nada a temer
pq Ela está a meu lado.

No Teu silêncio encontro a paz
em quietude o Tempo volta atrás
pra eu rever o que fiz
recontar meus passos
rever horas gastas
chances que perdi
vertigens, pessoas e crenças
revivo culpas e dores
fogos-fátuos de amores
amigos e estranhos
dançam no balé da noite

De tudo que passou
Nada mais me interessa
carrego Nada nos bolsos
nem lembranças ou credos
E do que me espera
nada temo
pq a meu lado Ela está.

Tudo passa, nada fica
Pedra sobre pedra,

do pó viestes,

e somem deuses e eras
Mas Ela fica.
E nada temo
pq a meu lado está Ela.

MÚSICA - Sleeping Song (for Clara)

A9 E7
I see you in silence threre is no moving

A9 E7
I see you in silence and think why

D7M
All the things happen

C #m7
Lord forgott us

Bm7 A9
All we can do now… cry


A9
I see you sleeping

E7 A9
Can´t believe in angels above you

E7
Make me deny

D7M
There will be chances

C#m7
For any changes

Bm7
It´s just a question of time




Homenagem a Clara P. de Orvalho, 12 anos de idade, 08 em coma.

quarta-feira, 6 de junho de 2007

Desvanecido / Pass away

DESVANECIDO

Tudo que vivi pode ser contado
em um conto de inverno.
Tudo que disse pode ser ouvido
como uma brisa fria que passa.

Em todos lugares que caminhei, um passo na areia;
Todos que amei, uma memória de calor.
Toda mão que apertei, toda casa que ergui,
Todo coração que parti, tod`alma que rasguei,
tornam esse momento mais perto.
Como uma canção de ninar em tumba de mármore
para um morto que ouve não mais.


PASS AWAY

Everything I’ve lived can be told
As a winter tale
Everything I’ve said can be heard
As a cold breeze

Everywhere I’ve walked
A step on the sand
Everyone I’ve loved
A warming stand

Every hand I’ve shaked, every house I’ve made
Every heart I’ve broke, brings this moment close
As a sleeping song in marble tomb
For a dead one that hears no more.

sábado, 2 de junho de 2007

Dançando no abatedouro - Concurso Antologia de Poetas Brasileiros Contemporâneos - vol.5

Foi dito que...

Faço amor com a morte
Dou adeus à sorte
E que a Deusa Morte
Me amarrou a si.
Amarrou de consorte
ama e errou na sorte;
Pois, como pode a Morte
não levar a dor
a quem lhe leva amor,
não elevar a cor
escura da noite,
que lhe escorre nas costas,
nessa hora morta,
rubrasangue do açoite
que é o fim ?

Pois se errou a Morte
cabe o erro a mim,
- que lhe desvirtuei,
que lhe dilacerei,
que de corpo a amei.
E que de graça
lhe trouxe a desgraça;
e o que nem Deus nem sonho
conseguir ousou
sem perceber imponho
sem querer tornou,
e trouxe à Morte um fim
- mas minha amada
me espere n`alvorada
que não irá sem mim.

As Horas

14:27
Ela começa a tirar a roupa bem devagar. Primeiro os sapatos, que joga para um canto do quarto. Ele desabotoa másculo a camisa a olha-la da porta. Ela levanta a transparente blusa lilás e tenta tirar a mini-saia, mas não há tempo – ele avança sobre ela, a agarra com força, beija sua boca e morde seu pescoço. Eles rolam na cama, peito com peito, a respiração de um termina onde começa a do outro. Ela não opõe resistência quando é virada de costas e ele sobe por ela com a experiência de um domador de cavalos selvagens. Ela não protesta quando tem os cabelos puxados para trás e uma mão aberta se espalma em seu quadril – o som que sai de sua garganta não é de protesto, é outro, um urro, e se há protesto ali é por não ter feito isso antes. Então eu abro a porta toda de uma vez e descarrego minha arma. O sangue escorre daquela massa muscular indistinguível de seres, fundindo-se e formando uma única poça no chão. A sublime comunhão dos amantes: Até que a morte.

13:56
Será que ele vai gostar dessa? Não, melhor usar aquela. Não, melhor a blusa transparente. Isso! Adoro lilás. E por baixo? Lilás também! Sim, e de renda, com detalhes, para eu tirar beeemmmmm devagar, bem lentamente, quero fazer amor como no filme da Lagoa Azul, ai..., bem romântico, bem rosa, bem bonito. Será que ele me ama mesmo? Será que ama mesmo “sua rosa”? Ai nossa, ele já vai chegar. Será que traz flores?

13:50
Droga de ônibus. Espero que a desculpa de “médico” cole no departamento pessoal. Reinaldo estará em reunião a tarde toda, não tem problema à vista. Afinal, sendo chefe, não pode se ausentar mesmo. É, mas só lá que ele é chefe, porque quem manda em outras praias sou eu!

13:20
Sr. Reinaldo, desculpe incomodá-lo. Fico feliz por sua reunião ter acabado mais cedo, mas devo lembrá-lo que hoje é o último dia para o envio do relatório. Aquele relatório de realização financeira que o senhor levou para terminar em casa, lembra ? Ah, esqueceu lá? Quer que eu mande um boy buscar? Ah, entendo! Realmente é um bom ensejo para aproveitar e dar um beijo na esposa. Quer que eu compre flores?

19:38
Então este é o ocorrido Sr Delegado. Como dito antes, as próprias marcas de violência corroboram a versão do meu cliente. Assim que chegou, ele ouviu barulhos vindo do quarto acima, pegou sua arma no gaveteiro da sala e subiu. Quando se deparou com o marginal (que, devido às circunstancias, não teve como identificar imediatamente como seu assistente) estuprando sua esposa ele atirou. Não, ele gostaria de retificar a questão dos tiros. “Acidentalmente”, que conste nos autos, no primeiro tiro, por infelicidade, a arma disparou e acertou sua esposa. Meu cliente é um empresário, não um franco-atirador! Afinal, ele também é um senhor de sessenta anos, suas mãos não são mais tão firmes. Ela? Tinha vinte e cinco anos, por quê? Sei, “só curiosidade”, entendo... Retornando, meu cliente vendo a situação como se apresentava foi tomado por violenta emoção e defendeu sua honra e de sua esposa. Como o assistente entrara ? Bem... hoje é, digo, era aniversário da esposa, digo, ex-esposa de meu cliente, então o meliante deve ter usado as flores como desculpa, deve ter dito que meu cliente as mandara entregar, e ela o deixara entrar. Isso, isso, o testemunho da vizinha confirma os gritos de... “dor” e... “desespero” da esposa de meu cliente assim como as “marcas” em seu corpo. Pobre mulher. Que Deus a tenha.

Encarcerado - Concurso Antologia Poética de Cidades Brasileiras (1990)

Há coisas que você não consegue fazer
Por estar preso em um embrulho lacrado,
Agarrado à ética, moral e pudor
e para outros sentimentos fechado.

Um invólucro que não lhe deixa entender
o belo que há a seu lado
um invólucro que lhe faz parecer
um ser vazio e gelado.

Vergonha, preconceitos e ética
não importa o nome dado
é um sentimento estúpido
do qual o homem é dotado

Sentimento que não lhe faz o futuro alcançar
pois lhe deixa com os olhos fechados
e pensamentos medíocres lhe dá
Nos quais estará o homem para sempre encarcerado.

sexta-feira, 25 de maio de 2007

Imagem 02


Imagem 01


Jardim de pedra

Caminhando entre mármore e paz, vejo-te como branca estátua e velo o naufrágio de tua existência. Quando submerges na treva da terra, útero que nos rumina, paro e penso:


De tudo que vi
A mais bela visão
Um véu que cobre sereno
As costas da sua mão

Deitada lânguida me esperando
para estar ali a seu lado
no silêncio de nossos corpos

- casa onde ora o Desejo falou mais alto

Você desce eu permaneço
Ao redor outros olhos não entendem
porque os meus
não se afinam a seu coro de lágrimas
mas como não petrificar
diante do belo que une
o crepúsculo à alvorada?

Em mim não há força ou sentimento
do vazio só emerge a brandura
mesmo sua alcova de madeira vendo
descer suave à solidão insondável
do escuro da sepultura

É como se Ele aspirasse de volta
O Sopro de meu nariz
para viver uma vida morta
de um torto triste e infeliz.

... e hoje, lembro-me quando andando por aí um mendigo velho, numa esquina, uma vez me disse:
“tudo que sei é que anjos caem
como lágrimas de estrela
e que Deus nos disse frágeis centelhas
- de vida”

Você ... ?

Você limparia minhas feridas?
Eu fraco sujo cortado
ferida exposta sangue coagulado

Você me olharia “daquele jeito” – ?
Eu feio caído estilhaçado vidro
eu-barranco desmoronando
carne sem charme farelo de gente
migalha de pão cuspida pelo canto da boca
resto de algo jogado no chão que se pisa por engano

E quando por medo
de todos de tudo
por todos por tudo
quebrado confuso
Apertaria-me forte até eu parar de tremer?

Você seguraria minha mão no escuro?
Levaria-me Cego
Bagagem estorvo entulho
Por este mundo que fere e machuca
Que me deixou assim,
que me venceu.
perderia seu tempo com um perdedor?

e quando nem a pena valho
e te procurasse
haveria alguém a meu lado?

.... ?

Prece ao Sol Poente

Meu Deus é o deus do Sol Poente
O que tudo sabe, O que tudo sente.
Que sabe que apesar de intensa toda luz vai se findar
Que seja o calor do Sol ou de uma vela,
ele vai se apagar
Que toda cor morre ao firmamento
seja o escuro um tormento
ou um lugar pra repousar
Que cai a noite negra e fria
como um bebê que já dormia
e nunca mais vai acordar.
Meu Deus é o deus do Sol Poente
O que tudo sabe, O que tudo sente.

Pular Carniça - Concurso Prêmio Centenário José Lins do Rego

Tudo corria dentro da mais perfeita normalidade. Não havia pessoas correndo para todos os lados, gritos, confusão, ou algum barulho desprovido de sentido. Poucos carros passavam, pelo avançado da hora, a barraca de cachorro-quente atendia seus clientes notívagos, algumas pessoas no ponto esperavam a condução demorada. Nada fora do normal para essa madrugada de quinta, não fosse o corpo estendido no chão.

Lembro-me de quando cheguei a esta cidade. Não, não quero me ater ao choque que embaralha os sentidos de todo interiorano quando este chega em uma capital – ainda mais uma metrópole como o Rio. Todo emigrante, retirante, viajante, todo aquele em jornada ou de passagem, sente isso. E os relatos chegam a perder a graça de tão iguais: o mar de pessoas apressadas, ruas gigantes, ruas apertadas, prédios rasgando o céu, aleijados dormindo no chão, o ar sujo e carregado de barulho, carros importados e exposições de arte, bancos 24h, restaurantes 24h, gente 24h, disque-comida, disque-farmácia, disque-companhia, buzinas, pastelaria de dono chinês e cybercafé. Se alguém quiser que eu explique como foi para mim esse caleidoscópio cultural, que experimente por si mesmo: pare um dia no meio da avenida mais movimentada, feche os olhos, respire e depois os abra. E tente enxergar. Está tudo lá. Inclusive o homem morto.

Não sei como fora parar lá. Nem o que causara sua morte. Estirado no asfalto, ao lado do ponto de ônibus, um rastro vermelho vinha de sua cabeça até o meio-fio. Na barraquinha, mais dois cachorros-quentes foram vendidos.

Leio o jornal para esquecer o homem morto. Nas manchetes vejo uma releitura da Bíblia, com casas destruídas, barracos desabando nas encostas, centenas de desabrigados, tudo pela força das Águas que toma forma de enchente e inundação. Lembro desse horror em minha infância no Engenho, quando da subida do rio, com as águas invadindo nossa Casa Grande, tornando o canavial em mar. Lembro do Amâncio abrindo sua casa para nós, dos peões levando comida para as vítimas, criando barricadas para a água, o povo de terras vizinhas vindo para ajudar. No engenho não se entendia por família só os unidos pelo sangue. “Ah!, isso tudo é uma palhaçada”, esbraveja um homem que se achega, apontando uma manchete em meu jornal que dizia “Campanhas de doação para os desabrigados estão sendo realizadas...”. Continuou, “Sou professor em Angra dos Reis. Vi dezenas de famílias aglomeradas na escola municipal, daí, quando percebi, os responsáveis pela distribuição das roupas e dos alimentos estavam separarando as doações: tudo que vinha de Ipanema, Leblon, tudo que vinha da alta da roda, ia pra uma sala separada. Nada daquela sala jamais foi visto pelos desabrigados”. Chega seu ônibus e ele parte. Olho as fotos e penso no Engenho... Mesma água, pessoas diferentes.

Um cara passa correndo a meu lado em direção ao ponto de ônibus. Faz sinal com o braço, o motorista pára. Ele corre, pula por cima do homem morto, pega sua condução. O motorista arranca e quando sai quase passa por cima da cabeça do defunto.

Outro cadáver que tenho na memória, conheci quando Aquela-que-a-todos-vem parou para uma visita no Ateneu. Franco se foi em um domingo alegre e com um enterro modesto. O diretor Aristarco chorou não a perda de um aluno, mas a perda de seu “cão”, de seu “exemplo ruim para o resto dos alunos”. Chorou com uma fragilidade que acabou com qualquer semelhança que eu antes via com a figura de meu avô, o Coronel José Paulino. Aliás, fragilidade, no Ateneu, encontrava nos rapazes tímidos e ingênuos sempre quem os impelisse para o sexo da fraqueza – eram “dominados, festejados, pervertidos como meninas ao desamparo”, alertara-me um aluno. “Vais encontrar o mundo”, dissera o pai de um colega efeminado, à porta do Ateneu – e encontrou, entre suor, preconceito, sangue e libido. Tudo, no final, consumido em um incêndio junto com o nobre colégio. Mas as chamas ainda estavam nos olhos desse garoto quando o encontrei, através de suas memórias escritas, anos depois.

“Tem fogo doutor?” pergunta, de repente, um mendigo a meu lado. Aparecera do nada; uma figura estranha, sombria, barbas longas, cabelos desgrenhados, os dentes tortos em um sorriso malicioso. A pele escura pela sujeira e voz arranhada dão o tom nefasto de um mau presságio. Acendo seu cigarro e ele parte, repugnante, bem devagar, como Os Cegos de Baudelaire, ao mesmo tempo sinistro, como uma criatura de Stephen King. Quando pequeno diziam haver um lobisomem nas terras do Engenho. Sacudo a cabeça para espantar essas besteiras, lembro que aqui no Rio tenho de ter medo é de assaltante e bala perdida. Por que aqui, viver sobre o natural é o mais aterrorizante

Essas recordações saudosas do Engenho... cairei no piegas do emigrante que fica a sonhar com sua terra abandonada? Ficarei tecendo odes aos pés de milho crescendo, canções para a cana acamando na várzea, sonetos ao gado gordo e as vacas parindo? Na verdade o Engenho se tornou um monte de mato na primeira vez que vi dúzias de garotas de biquíni na praia. Prefiro minha respiração batendo com as ondas na arrebentação e suas sereias do que a perambulação por brejos e pés de cana.

Perdi meu ônibus. Diabos...! Estas cenas aprisionaram-me e por um instante fiquei como os canários na gaiola. Quando pequeno caçava dúzias deles. Ficava horas no sótão, preparando as armadilhas e observando sorrateiramente minha presa. Então via como ela ia se tornando segura, até entrar na armadilha e eu ouvir o fechar do alçapão. Agora, cativo, passava de minha reles presa a meu grande amigo engaiolado. E éramos irmãos em semelhantes grades, as da gaiola e as da solidão; e para eles eu era todo atenção, eles eram meus confidentes, meu passatempo, a razão do meu Tempo, cuidava deles, rezava por eles, amava-os. E assim iam os dias... Até que ganhei um lindo carneiro para montaria, chamado Jasmim, e desfilava sobre ele por todo o Engenho, causando inveja a todos. E nunca mais tive tempo para aqueles canários na gaiola.

Meia hora até o próximo. E tudo no mesmo lugar: eu, a barraquinha de cachorro-quente, o mendigo, os caras parados no ponto e o homem morto. Simples assim. Nada mágico como as fábulas da velha Totonha nas noites quentes do Engenho. Ela, que sabia como ninguém contar uma história, não teria aqui matéria-prima para a imaginação – um homem morto no chão, outro homem em pé a olhá-lo. Sem ação, emoção, sem pompa nem vida. Tudo parado, tudo tem lugar e o homem morto chega a fazer parte natural da cena.

Finalmente, outro ônibus. O transporte de madrugada é um desalento. Entro no ônibus, sento, e nem lembro de dar uma última olhada para o homem morto. Esqueci dele assim como do Engenho tinha me esquecido. Troquei-o por um ônibus. Troquei a infância pela cidade. Troco de assento agora porque a janela desse não abre. Assim funciona o coração: caça, captura, devora, até surgir caça nova. Talvez lembre do Engenho quando estiver caído, sozinho ao chão e outros me pulem para poder ir para casa.

Mariposas e Casulos - Concurso literário Guemanisse

A cama é dura por causa da dor que ele sente nas costas. Sua respiração é leve, entrecortada com pausas de apinéia, e ele pouco se mexe debaixo dos lençóis. A noite está quente, um vento seco vem da janela e em nada alivia. Fico a olhá-lo por muito tempo, não sei dizer ao certo quanto. Uma mariposa entra voando e se aloja na parede. Talvez tenha sido a febre, mas, hoje, mais cedo, dissera como amara minha mãe; pediu para ver sua fotografia, Aquela, com vestido com flores azuis, em que ela está brilhando e seu sorriso é como o Sol! Aquela... aquela... Contou como a vida fora dura consigo, praguejou, lamentou-se em rancor, relembrou, chorou. Olho-o frágil, deitado e suando, e penso o que tenho de parecido com ele – talvez a curva do nariz, talvez a linha do queixo, talvez um ou outro formato de unha, talvez a orelha esquerda.
Não. Nada herdara. Eu não tenho nada a ver com esse homem.

12:47; 11 de maio de 1963. O almoço demorava para ficar pronto; minha irmã nunca foi muito rápida na cozinha. Seu problema nos pulmões a atrapalhava com os vapores que subiam das panelas, além da alergia que tinha a certos cheiros de temperos. Às vezes a ajudava, escondido, para que ele não me visse, Trabalho de mulher, vai virar um maricas fazendo isso!, sempre a mesma frase seguida do mesmo tapa. Deixe-a!
13:10, agora a mesa já estava posta, ele na cabeceira, eu à direita, minha pequena irmã à esquerda. Nesse dia, tinha eu 17 anos. Minha irmãzinha era mais nova do que eu cinco anos, mas já estava ficando moça, uma moça linda, penso que minha mãe deveria ser assim quando ele a conheceu. Às vezes acho que ele pensava o mesmo, pois, como naquele dia, o peguei várias vezes a olhar minha irmã demoradamente; daí seu rosto se torcia em uma expressão de raiva e tristeza e ele se virava a fitar a porta dos fundos sempre entreaberta. O ferrolho fora arrebentado de dentro para fora com o soquete de carne, e foi só o que ele encontrou na casa naquele dia em que voltou do trabalho – o soquete e as gavetas vazias. Que o mal que ontem nos afligiu hoje não nos acompanhe, Amém; dizia em voz monótona sempre antes de começarmos a comer.
Ele nunca consertou o ferrolho.
Está sem sal. Um tsic quase inaudível escapou dos lábios de minha irmã. Um simples tsic. Você tem pressão alta pai, ela ia dizer como sempre quando ele fazia essa reclamação rotineira. Mas nesse dia fora diferente. O tsic reverberou em seu crânio e estremeceu seu corpo fazendo-o levantar em direção a ela. Sua mão fechada cruzou o espaço entre os dois direto à boca de minha irmã, esmagando dentes, gengiva e um sorriso brilhante que ela nunca mais lembraria como dar. O impacto arremessou-a contra a parede, a panela voou de sua mão, caindo e espalhando a sopa pelo chão. Ele avançou em fúria até a garota que escorregava, como manteiga no pão quente, pela parede até o chão e sem hesitar chutou sua barriga. Imediatamente ela ficou roxa, a respiração rarefeita, a boca escancarada buscando o ar que fugia correndo de seus pulmões como um cão quando enxotado. Mas eu vi que ele não ia parar. Quando ia dar outro chute, levantei súbito como um raio e o empurrei para longe dela. Foi o meu fim.
Ele se ergueu, Ah, então se já é homem pra me enfrentar, então vai apanhar como homem. Vou te mostrar quem manda nessa casa, e me deu um murro no nariz que esvaiu em sangue. Foge, gritei. Ela entendeu. E então, não é homem? e me deu um soco no estômago com tanta força que meu corpo vergou sobre si, Foge, eu gritava em dor. Minha irmã começou a rastejar, puxando e arrastando o corpo pelas unhas que cravava no chão, sugando o ar que respiram as solas dos sapatos. Outro soco na cabeça, cambaleei para trás, acho que eram trevas no canto do olho, ou sangue, já não sei, ela se arrastava pelo portal em direção à dispensa embaixo da escada, ele vinha e sua mão quebrou algo em minha boca; acho que engoli pedaços de meus dentes, ela continuava se arrastando, ele continuava avançando, as trevas ou o sangue, não sei, tomavam minha vista, ouvi, graças a Deus, a fechadura da dispensa se fechar, então cai pesado no chão com um baque surdo. Senti ainda um chute no estômago e um pisão nas costelas, antes de ouvir aquele homem pegar o casaco e sair calmamente e a porta da frente se fechar. Fiquei no chão sugando o ar que respiram as solas dos sapatos lembrando se em algum momento levantara a mão meu pai.
Não, não levantei.

Uma mosca pousa em sua testa. Suas sobrancelhas ainda são grossas, encontrando-se na linha do rosto em cima do nariz. A febre cedeu; dorme calmo, tranqüilo, como qualquer homem de bem. Quarenta e dois anos depois e sou a única pessoa que ele tem para chamar. Olho pela porta entreaberta e vejo meu quarto do outro lado do corredor. Às vezes, a pequena Mariângela ia lá e pedia para eu segurar sua mão, pois tinha medo do escuro. “Você toma conta de mim?”. “Sim minha irmã, tomo”. Tirei-a de casa, mas nada pude contra o coágulo em sua cabeça – “oriundo de prováveis traumas recorrentes na região”, disse-me o laudo.
01:31, hora do remédio. Ele dorme, hoje sem tossir nem cuspir aquele negro catarro. “Deficiência respiratória devido ao uso excessivo de cigarros”, me dissera o médico; “É esperado que seus pulmões parem a qualquer instante”. Olho para o frasco na mesinha ao lado da cama, olho para o travesseiro ao lado dele.
Ele dorme tranqüilo, como qualquer homem de bem.
Vejo a pequena Mariângela correndo pela casa, já estava ficando uma moça linda.
Em nenhum momento lhe levantara a mão.
Olho para o frasco na mesinha ao lado da cama, olho para o travesseiro ao lado dele.
“A qualquer instante”.
A mariposa dá voltas pela cama.

Que o mal que ontem nos afligiu hoje não nos acompanhe.
Amém.

Ritual - Concurso de Crônicas Prêmio Literário Sérgio Bermudes

Acende-se o fogo. Carne crua sobre a mesa de pedra, ainda sangrando, é cortada, mal fatiada, com uma faca cega. Ferro enferrujado se arrasta contra corta músculos, o sangue quente escorre corre pela mesa fria e goteja em bocas escancaradas de cães ávidos pelo sortimento. É a preparação.
Então, começam a chegar.
Gritos de saudação. Urros. Corpos suados se saúdam em abraços. Apertos, toques, lábios nas faces, lábios nos lábios, saliva e suor. Poucas vestes, seminus, calor excessivo. Líquidos coloridos, dourados e cor de sangue, surgem como que por mágica em mãos ansiosas frenéticas e escorrem por gargantas abertas e vorazes.
Fome.
Pedaços de carne são atirados na brasa. Nacos de carne dançam nas bocas. Dentes rasgam, mandíbulas se fecham e mordem. Mordem. Um ruído contínuo ao redor, conjunto ao ranger e mastigar, aumenta, ensurdece, hipnotiza. Corpos ondulam e tremem em um som incessante de batidas que rugem como tambores que clamam a tribo à guerra. Vagam como se, com a alma em branco, possuídos fossem pelo Algo-que-não-se-vê. Pessoas em volta do fogo, um deles se abaixa e o alimenta. Brasas no chão, fagulhas no ar, cheiro de cinzas e seres. E no calor todos os cheiros ficam mais fortes. A fumaça aumenta vira neblina e a todos cerca.
E chegam mais, e mais...
As horas caminham em tempos diferentes para todos e para cada um. Olhos brilham e reluzem as misturas que bebem, bocas moles falam demais, gritam, esbravejam – e mais líquidos sorvem. Eles se sentem mais fortes, bravos, elas se sentem lânguidas, algumas parecem confundir os parceiros. Alguns desmaiam, outros acordam seus olhos para as chamas; o fogo que queima por fora, o fogo que queima por dentro – quem dormiu não tem mais direito à carne ou a parceira que deixou solta. Fogo, fumaça e dança – Beltane recriado.
E chegam mais e mais.

O calor aumenta, a pressão aumenta. Hormônios sobem estratosféricos, tumulto, gritaria. Cães correm, homens correm e uivam. Loucura, anima animale – chão para uma Inquisição
que não vem, e todos, ignorantes do mundo, continuam felizes.
E chegam, mais, e mais...
Aos que chegam o ciclo se repete. Aos que chegam o ciclo se fecha. O Sol percorre o arco do céu e morre ao fundo - e todos felizes, ignorantes do mundo. A fumaça tampa o horizonte, tudo fica escuro.
Como um pergaminho, uma Tábua da Lei, cai no chão o aviso que a todos trouxe, a evocação desse ritual mágico, O Chamado:
“Churrasco em Bangu amanhã à tarde! 10, 00 Real a entrada, bebida liberada!”