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quarta-feira, 18 de julho de 2007

Sertanias, Romarias e Asas-Brancas em Aquarela - Concurso Homenagem a Graciliano Ramos


"Pinto a dor, a alegria, o trabalho, a miséria, o meu povom enfim."
Cândido Portinari



E Fabiano acordou. Porque Fabiano queria viver.
Recolheu sua família e caminhou.
Porque Fabiano queria viver.


Durante o sono da noite, tivera uma sensação. Um sonho, ele achara, pois havia muito tempo eles se perderam e não encontravam o caminho de casa através do sertão. Havia um lugar bom, para ele, sua esposa e filhos. Até para Baleia. Tinha de haver. No sonho, havia sinais. Era só segui-los. Em duas palavras, tentou, entre dentes, explicar à família o ocorrido, mas desistiu. Não saberia. Então silenciou. E eles o seguiam como sempre.

O sertão passava numa triste solidão. O sol alto castigava os retirantes, dúvidas escorriam da pele junto com o suor, sobre se aquela era mesmo a direção certa. Fabiano ainda não via o sonho. Não era uma plantação coberta pelo verde dos olhos de sua esposa - era o vermelho de sua barba cobrindo o chão de baro, o vermelho lhe tomando os olhos e a garganta num braseiro sem tamanho.

Tudo era pó e desolação.

Horas em silêncio. Longe muitas léguas da falta d`água que lhe tomara o gado, da sede que levara seu alazão, Fabiano, quando olhava a família, já achava que isso era uma sombra que o esperava de tocaia para lhe levar o pouco que ainda tinha - os poucos a seu lado. Falta d`água, falta de vida, ela o seguira até aqui. E havia horas o pequeno no colo da mãe não abria os olhos.

De repente, viram um grupo ao longe. Aproximaram-se. No encontro, por um suspiro, tudo pareceu imóvel.

Era um quadro belo e comum em tom azul: dois homens, uma madeira comprida indo do ombro de um ao do outro, com um lençol preso pelas pontas, carregando um volume que parecia leve... leve como o peso de todos os que vivem no sertão. Leve como a sede, leve como a fome. duas mulheres ajoelhadas: uma à frente do grupo rezava, a outra em frente ao lençol estendia os braços aos céus em desespero, como que a pedir, como que a chamar - mas nenhuma voz veio, nenhuma voz falou. Pouco se fala em um Enterro na Rede. Só súplicas e preces.

Então o suspiro passou. Como que quase sem querer, ela recolheu os braços, levantou e virou os olhos para o sul. Parou de chorar. Seu rosto foi assumindo a serenidade do azul da paisagem. Ela sorriu e lembrou... Quem amara não ia se levantar da rede, sua alcova e cova - mas ela não sentia mais dor. Ergueu a cabeça, olhou para a família de Fabiano. Seu braço se ergueu lento apontando o sul, pois agora ela lembrara o que esquecera. O filho mais velho a olhava, e ela retribuiu o olhar, então Fabiano também entendeu - mesmo que não soubesse explicar sobre um lugar aonde os mortos não voltam mas em que não se sente dor por eles. Bastava seguir o olhar. O filho pequeno se aninhou no colo da mãe e andaram.

Nos Enterros na Rede não se fala muito. Nem mesmo Deus.

Baleia demorou a chegar junto à família, pois durante o quadro que se dera estava ao longe como um senhor de idade, que ninguém notara, sentado diante de uma tela com vários potes de tinta junto a si. Na mão, uma vareta com o que parecia um tufo de cabelos na ponta.

Caíra a noite.

Subira o sol, caíra a noite ao fim do dia. E assim se fez por mais dois dias.

Fabiano, sentado, olhava a esposa de joelhos. Filha dessa vida a sol comprido, rezava. Não, tentava. Como ela não sabia rezar, tudo o que oferecia a Nossa Senhora da Aparecida era o olhar e as lágrimas que esperava rolarem até a boca para não desperdiçar água. Fabiano não rezava. Nem esperava a sorte. Se ela existia, ele não sabia - nunca a vira pelo sertão, e se ela já estivera aqui, fugira pra capital. Ou pro lugar esperado pra onde ele ia.

Entretanto, fosse a tal da sorte de volta, fosse Nossa Senhora, que entende uma prece sem falas, ao final da noite um ronco surdo acordou a todos.

Agora se anda mais rápido, como se não houvesse dor, sede ou fome. Já faz três noites que pro sul relampeia. Não há música mais linda que o ronco do trovão. Andam. Então chega uma cerca.

Entram pelo porteira devagar. É o medo e sua irmã desilusão que tentam segurar seus passos. Mas seus narizes vão correndo - cheiro de terra molhada, mato verde, esperança. E os ouvidos engaiolam uma asa-branca a cantar que é uma beleza.

A plantação toma até onde a vista alcança. Não há jagunços vigiando a lavoura. Quem está aqui não precisa ser vigiado. Quem está aqui respeita a lavoura, a si, a vida, a morte e aquele a seu lado. Todos trabalham, há trabalho pra todos. Todos aram a terra, há terra pra todos. E todos comem.

A chuva que se foi deixa de lembrança as cores mais vivas nos campos. São tantas cores, tantos tons difeerntes, que Fabiano quase pperde o equilíbrio. Por um minuto, olha para si e ao redor. Esquálido e sujo, envergonha-se do que é, do que a vida fez de si, de não merecer estar aqui, e um ímpeto de correr lhe toma as pernas. Mas antes uma mão o segura pelo braço e o traz para perto de todos. Pois o pecado que carregamos é o de não acreditar que se pode.

A mão que trouxe Fabiano tem um pincel em sua companheira. Baleia corre para junto do dono das mãos, ganha um afago delas e senta-se a seu lado. Fabiano é levado até vários retângulos de madeira, e neles vê espelhadas todas as cenas à sua frente - Crianças Brincando, homens colhendo O Café, mulheres preparando um Casamento na Roça para o fim da tarde.

O pintor pede a Fabiano e sua família que juntem a um senhor, uma mulher e seu bebê e mais dois garotos que acabam de chegar. Quer todos Os Retirantes juntos para fazer um quadro. Um quadro sobre um lugar que lhes pertence. Como pertence a todos. Um lugar onde o céu azul não constrasta com as aves negras ao alto.

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