ROBERTO KAHLMEYER-MERTENS: No intuito de ambientar nossa conversa sobre o haicai, sugeriria que o senhor falasse um pouco do período em que morou no Japão.
LUÍS ANTÔNIO PIMENTEL:[2] É com prazer que falarei sobre este período. Eu iria para lá e não voltaria mais para o Brasil, pois estávamos numa época turbulenta, era o Estado novo. Getúlio Vargas amansava o terreno para a ditadura, nessa marcha os integralistas ameaçavam tomar o poder com um golpe que estava sendo preparado e se dizia que: “ ― Cabeças voariam sobre cabeças”. Uma das cabeças que estava para voar era a minha, que combatia o integralismo.[3] Eu tinha amigos dentro do integralismo que me informavam: “―Você é já marcado. Gosto de você, você é amigo e é dos meus, mas não posso lhe defender se a coisa estourar, pois sabem que você é do PC e ataca de frente o integralismo.” Foi quando tive a chance de uma bolsa de estudos de dois anos no Japão. Assim, saí daqui em 1937, quando os integralistas ameaçavam a famosa passeata dos cem mil; na época se passava nas praças e se ouvia em todo lado: “― Anauê!, anauê!”.[4] Pois bem... cheguei no porto de Yokohama no dia 02 de maio e no Japão fui locutor da rádio de Tokyo em língua portuguesa em ondas curtas que transmitia para o mundo inteiro.
K-M: Sei.
LAP: Em 27 de novembro daquele ano, Getúlio dava um golpe inibindo as pretensões dos integralistas. Daí eu pensei comigo: “―Saí de uma ditadura, para cair em outra”. Assim fui ficando pelo Japão. Pois mesmo que este não fosse uma república federativa, não fosse um país socialista, era um país civilizado e eu era persona gratissima lá. (Posso dizer que tinha mais popularidade em Tokyo do que tenho em Niterói). Eu brincava com os japoneses dizendo assim: “―Eu sou a numerosa colônia do Brasil!”, porque era um brasileiro no Japão, contra um milhão de japoneses no Brasil. Eu era um para um milhão... (risos).
K-M: Poderíamos dizer que este período de afastamento do Brasil foi um auto-exílio?
LAP: Foi um exílio voluntário, motivado por um espírito de defesa. Os integralistas cresciam dia a dia, fardados pela rua em camisas verdes falavam em outra noite de São Bartolomeu. Tendo a chance, parti para o Japão.
K-M: O senhor é apontado como um dos responsáveis pela recepção do gênero haicai no Brasil, ao lado de Olga Savary, Helena Kolody e, mesmo, o Guilherme de Almeida, um pouco antes. Como foi seu primeiro contato com a poesia haicai?
LAP: Eu gostaria de registrar isso, pois há uma imprecisão aí. Alguns dizem que a primeira notícia que se tem do haicai no Brasil é dada no livro Miçangas de Afrânio Peixoto.[5] Bom, tenho o livro e vou trazer para você ver... nem de longe se fala de haicai, tampouco de poesia japonesa. A primeira vez que tive contato com haicai eu tinha 14 ou 15 anos, foi na primeira edição em língua portuguesa de O tesouro da juventude. Se você tiver chance de consultar esta edição verá lá haicais traduzidos por Manuel Bandeira, mas todos com “pé quebrado”[6]... Ali, Bandeira mostrava o haicai mas não explicava o que era, apenas apresentava e não havia um estudo sobre ele. Daí, quando fui para o Japão, com meus vinte e cinco anos (dez anos depois daquele primeiro contato) tive a sorte de conhecer um grande poeta japonês que tinha estado no Brasil com o pai, que era Chargé d’affaires.[7] (Na época em que nosso país ainda não tinha representante diplomático, esse cargo seria o de um “encarregado de negócios”, como se fosse um Cônsul). Seu nome era Horiguchi Daigako (que significa “Grande escola”, “Universidade” em japonês) e, conversando, ele me mostrou, explicou o que era o haicai. Eu disse que não saberia fazer haicais, pois as palavras japonesas eram pequenas, quase monossilábicas como as do chinês. Daí, ele interessado em me ensinar, disse: “ ―Pimentel, como você tem coragem de me dizer isso?! Veja só na minha língua a palavra eu: watakushi (4 sílabas); a palavra. você: wanatá (3 sílabas). É uma língua em que existe sinônimo para pronomes, e pronomes de tratamento cada um para um caso específico. Então, não me venha falar em dificuldade”. Foi com ele que eu aprendi um pouco sobre a história do haicai, suas normas... foi com ele que eu soube que havia os mestres do haicai e com ele conheci a obra de Bashô. (Eu algum dia ainda vou escrever a biografia do Bashô, com os detalhes da vida dele que foi um sujeito extraordinário).[8]
(...)
K-M: Após isto tudo, podemos dizer que foi preciso o senhor ir ao Japão ter essas vivências para passar a fazer haicai não só lá, mas também aqui no Brasil. O que nos permite afirmar que mais que recepção, seu trabalho se serve da fonte japonesa do haicai.
LAP: Da fonte, sim.
(...)
K-M: Tenho observado, Pimentel, nas leituras que venho fazendo de suas poesias e também nos poemas de Bashô e de Issa...[9]
LAP: Issa vem um século depois.
K-M: Correto, mas podemos entender uma filiação entre ambos.
LAP: Sim. Podemos, podemos...
K-M: Observo principalmente em Bashô elementos diferentes de sua poesia haicai. Vejo uma poesia sem qualquer tipo de afecção subjetiva, ao contrário do que se vê em alguns de seus haicais, nos quais se presencia a figura do poeta na condição de um eu lírico. É o poeta que canta a beleza da boca da mulher; do corpo da musa; da emoção da lágrima, na metáfora do pingo de orvalho. E outro elemento que identifico freqüentemente: características e figuras de linguagem que em muito lembram a estética romântica e a simbolista. Por exemplo, no segundo caso, o místico, ícones do cristianismo e a presença do branco como cor mencionada predominantemente nas poesias. Isso seria o caso de sua poesia ou traço do haicai em geral?
LAP: Alguns destes símbolos estão muito ligados ao sentimento búdico, outros são transgressões mesmo. De certo modo, essas já se vêem na poesia do Issa. Ele se distancia da poesia de Bashô como também venho me rebelando. Veja só, introduzi o haicai onomástico, que Bashô não faria; o haicai erótico, que está fora do cânon de Bashô; o haicai engajado, panfletário, que Bashô não faria, pois para ela o haicai tem que se referir aos fenômenos da natureza e das suas coisas belas e suaves, nunca as coisas penosas e tristes.
(...)
[1] Confira texto integral em KAHLMEYER-MERTENS, R.S. Diálogo com Luís Antônio Pimentel. In: Verdade-Metafísica- Poesia. Niterói: Nitpress, 2007 (no prelo).
[2] Luís Antônio Pimentel (1912 - ): Poeta, professor e memorialista nascido em Miracema/RJ. Tendo sido aluno bolsista em intercâmbio no Japão, residiu lá entre os anos de 1937-42, familiarizando-se com o haicai ao ter contato com autoridades como Hagiwara Sakutarô e Takamura Kôtarô. Pimentel é um dos precursores do haicai no Brasil, responsável pela divulgação desse estilo de poesia ao lado de Olga Savary e Helena Kolody. Tem parte na cunhagem definitiva do termo “haicai” em língua portuguesa quando, estudante da faculdade de filosofia da Universidade do Brasil, encaminhou a Aurélio Buarque de Holanda, por intermédio do gramático Celso Cunha, o pedido de dicionarização, evitando que o termo se dispersasse em outras transliterações como hai-cai, hai-kai, haikai, haiku, hai-ku e hokku. O autor reconhece ter se permitido inovar o haicai ao tratar de temas tropicais, criando também o haicai erótico, o engajado politicamente e o étnico. Contudo, essas pequenas transgressões não corrompem o cânon estético inaugurado por Matsuo Bashô, como a rigorosa métrica e a exigência da indicação da estação do ano (Kisetsu) e dos fenômenos da natureza. Sua vasta obra literária, conta com livros como: Contos do velho Nipon (1940), Tankas e haicais (1953), Cem haicais eróticos e um soneto de amor nipônico (2004).
[3] Corrente política tradicionalista de vulto no início do século XX inspirada nos princípios Deus, pátria e família, tendo Plínio Salgado (1895 -1975) como principal articulador no Brasil.
[4] Saudação dos integralistas em língua tupi que significa “Você é meu irmão”.
[5] Cf:. PEIXOTO, Miçangas , 1977.
[6] Chama-se pé quebrado composições que não respeitam a rigorosa métrica do haicai.
[7] Citado em francês por Luís Antônio Pimentel.
[8] Jinskikiro Matsuo Munefusa (1644-1694). Nascido em uma família de samurais, Bashô (como era chamado) foi poeta e bonzo budista. É apresentado como o primeiro grande mestre do haicai, tendo estabelecido seu cânon tradicionalmente japonês. Peregrinou pelo Japão divulgando essa arte associada ao budismo, mas seus poemas só foram compilados postumamente por dois de seus contemporâneos, Hattori Doho (1657-1730) e Mukai Kyorai (1651-1704).
[9] Yataro Kobayashi (1763-1827), dito Issa. Poeta, filhos de camponeses, que e ao se dedicar ao haicai teria introduzido inovações técnicas no haicai, superado o próprio Bashô tanto em inspiração quanto em popularidade.
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