K-M: Podemos dizer, então, que há influências da poesia ocidental em seus haicais. O senhor não se considera um purista, não é?
LAP: Não, não, não... eu fico naquela situação de reverência, mas, faço como o Issa, que respeitava o cânon estabelecido por Bashô, mas que discordava, por exemplo, do poeta não poder “estar dentro” do haicai. Issa achava que o poeta sempre deveria estar dentro do haicai; sempre conversando com os personagens. Veja só:
Com serenidade
no monte o monge olha
através da cerca.[1]
K-M: Sim, mas eu vejo aqui a figura de um sujeito. Um eu subjetivo que sustenta uma ação. Impressão que vejo mais forte em sua poesia como marca de uma postura ocidentalizante, e por mais que tenha ali a forma de haicai, que exista uma preocupação formal de fazer haicai...
LAP: Tenho a preocupação de cumprir algumas daquelas exigências do cânon estabelecido pelo Bashô segundo o qual, um haicai deve mostrar, direta ou indiretamente, em que estação ele se passa. Contudo ele exagerou, fixando tal poesia geograficamente em uma região do globo terráqueo. Um exemplo disso, Bashô vai exigir que o haicai aponte a época do ano (kigo). Apenas no Oriente, no Japão e mesmo na China, as estações do ano são temas obrigatórios da poesia. As estações lá são tão bem marcadas que no tempo que eu estive lá, faz cinqüenta anos passados (não sei hoje) a previsão do tempo vinha no calendário.
(...)
K-M: Alguma da literatura que levantei sobre o haicai fala da participação feminina nas letras nipônicas. Não no haicai, cujos mestres eram homens, mas antes, em poesias antigas ainda de influência chinesa. No tempo em que o senhor esteve no Japão, era percebida a participação feminina na literatura?
LAP: Nem tanto, mas o maior Clássico da literatura japonesa foi escrito por uma mulher: Murasaki Shikibu.[2] Ela foi o Camões japonês, um Camões de saias. Houve no Japão uma outra boa poetiza chamada Chio Kaga. Ela tem uma linda poesia que diz assim:
Bela campainha
floriu na corda do poço
e eu fui pedir água.[3]
Para não desenlaçar a trepadeira florida da corda do poço, ela preferiu ir pedir ao vizinho.
(...)
K-M: Recentemente, Claude Lévi-Strauss, o conhecido pensador belga (que, inclusive, regula de idade contigo, tendo hoje seus 98 anos) deu um depoimento muito lúcido, mas igualmente melancólico, no qual afirmava que o Brasil se confundia com um considerável período de sua vida e obra, mas que este, bem como o mundo no qual viveu, não existe mais, “era um outro mundo”.[4] O senhor sente algo parecido com relação ao Japão e aquele mundo que o senhor habitou?
LAP: Não sei se posso fazer esta avaliação, pois não tenho idéia de como é o Japão de hoje.
K-M: Permita-me, então, reformular a pergunta: o mundo em que o Pimentel viveu, os significados e referências daquele modo de existir são vigentes ainda hoje? A longevidade da qual o senhor goza em algum momento o apartou de um modo de existir como aquele que o senhor experimentou quando esteve no Japão aprendendo o haicai?
LAP: Pode parecer trivial o que vou dizer, mas... essas coisas todas... a própria vida é e tem de ser dinâmica. Não há vida onde há estagnação... a vida e o mundo do homem avançam, avançam, avançam e avançam sempre e nós temos que acompanhar...
K-M: Isso parece ser praticado pelo senhor, principalmente quando vemos suas relações e afinidades eletivas no meio literário e jornalístico. Falemos um pouco disso.
LAP: Com prazer.
(...)
K-M: Entre os jornalistas-literatos o senhor conheceu Sérgio Cid.
LAP: Conheci, foi meu amigo. Prefaciei o livro dele, você viu?
K-M: Sim. Retalhos de minha infância. Eu li este livro na escola na mesma época em que conheci o autor, em 1983, salvo engano.
LAP: Era muito bom repórter, grande caráter e muito talentoso, muito talentoso...
K-M: E o José Candido de Carvalho? Que tipo de relação o senhor manteve com ele?
LAP: O José Candido vinha todo dia aqui à Livraria Ideal; [5] participava desses nossos encontros e também era amigo do Mônaco. Uma figura extraordinária! Tenho do José Candido uma lembrança muito feliz...
(...)
K-M: Sabendo de suas controvertidas opiniões sobre alguns dos autores que já são lugar comum no meio acadêmico, gostaria que o senhor falasse um pouco da discordância, por exemplo, da avaliação que se faz do Machado de Assis como o maior escritor em língua portuguesa ao lado de Eça de Queiroz. O senhor poderia dissertar um pouco sobre isso?
LAP: Naturalmente. Discordo desta avaliação após muito ruminar. Penso que o Machado de Assis, como a maioria dos que vivem sob um domínio cultural, no caso o europeu, acabava sendo mais europeu que os ingleses e franceses. De forma que ele parece não querer, nem de longe, ligação com o popular brasileiro. Então, vivendo no Brasil e sendo um cultor da língua, um escritor erudito, ele jamais se ocupou em falar do Rio de Janeiro que via por sua janela. (Dá a impressão que em sua casa não tinha janelas). Machado não viu uma planta de nossa flora, ele não viu o carnaval, ele não viu o futebol, não viu a revolta da vacina, a rebelião da chibata, não viu nada! Ele não viu nada do Brasil! O sujeito interessado em conhecer algo do Brasil ao ler o Machado de Assis, como escritor brasileiro, fica em jejum. Não é possível que um autor fique tão alheio assim! Neste ponto, prefiro o Lima Barreto. E não estou só neste parecer, também o “Velho Graça”, meu amigo Graciliano Ramos, pensava assim. Vou contar uma história, veja você: Certa vez, encontrei na rua um colega que era secretário do Diário de Notícias e ele me disse: “― Pimentel! Você por aqui!... Não quer dar um pulinho ali na livraria para abraçar o Velho Graça!?” (Graciliano fazia ponto numa pequena livraria ali no centro do Rio). Daí, fomos lá e conversávamos com o Graça, quando chegou o Machado, aquele que é autor de A morte da porta-estandarte...
K-M: Aníbal Machado.
LAP: Isso! Aníbal Machado, que era um gozador, pícaro, um provocador e disse: “― Ô Graça! Você já soube que está sendo considerado o novo Machado de Assis? Como você se sente?” Em resposta: “― Me sinto muito mal. Pois o Machado de Assis não sabe fazer diálogos, coisa que até o José Lins sabe.” Quer dizer, ainda sobrou uma farpa para o José Lins do Rêgo, (risos) presenciei isso...
[1] Nodokasa ya/ kakima wo nozoku/ yama no sô.
[2] Murasaki Shikibu (973-1014) pseudônimo de uma poetisa, novelista e serva da corte japonesa na Era Heian, cujo nome verdadeiro é desconhecido. Escreveu no período em que a linguagem oficial ainda era a chinesa; seus diários relatam que por vontade de sua mãe, recebeu uma educação como a dos homens, o que era contrário aos costumes da corte. Murasaki é autora dos Contos de Genji, e de uma compilação que traz 128 de seus versos, publicados postumamente.
[3] Asagao ni/ tsurube torarete/morai mizu.
[4] LÉVI-STRAUSS, Paixão pelo Brasil, 2007. pp. 40-43.
[5] Tradicional livraria fundada há mais de 70 anos em Niterói situada no assim chamado Calçadão da Cultura, que é ponto de encontro de literatos, artistas e intelectuais das diversas Academias de Letras e do Grupo Mônaco de Cultura. Carlos Silvestre Mônaco é livreiro, proprietário da Livraria Ideal e promotor cultural; tendo sido premiado como intelectual do ano em 2006 por indicação das diversas Academias de Letras do Rio de Janeiro.
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