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sexta-feira, 25 de maio de 2007

Mariposas e Casulos - Concurso literário Guemanisse

A cama é dura por causa da dor que ele sente nas costas. Sua respiração é leve, entrecortada com pausas de apinéia, e ele pouco se mexe debaixo dos lençóis. A noite está quente, um vento seco vem da janela e em nada alivia. Fico a olhá-lo por muito tempo, não sei dizer ao certo quanto. Uma mariposa entra voando e se aloja na parede. Talvez tenha sido a febre, mas, hoje, mais cedo, dissera como amara minha mãe; pediu para ver sua fotografia, Aquela, com vestido com flores azuis, em que ela está brilhando e seu sorriso é como o Sol! Aquela... aquela... Contou como a vida fora dura consigo, praguejou, lamentou-se em rancor, relembrou, chorou. Olho-o frágil, deitado e suando, e penso o que tenho de parecido com ele – talvez a curva do nariz, talvez a linha do queixo, talvez um ou outro formato de unha, talvez a orelha esquerda.
Não. Nada herdara. Eu não tenho nada a ver com esse homem.

12:47; 11 de maio de 1963. O almoço demorava para ficar pronto; minha irmã nunca foi muito rápida na cozinha. Seu problema nos pulmões a atrapalhava com os vapores que subiam das panelas, além da alergia que tinha a certos cheiros de temperos. Às vezes a ajudava, escondido, para que ele não me visse, Trabalho de mulher, vai virar um maricas fazendo isso!, sempre a mesma frase seguida do mesmo tapa. Deixe-a!
13:10, agora a mesa já estava posta, ele na cabeceira, eu à direita, minha pequena irmã à esquerda. Nesse dia, tinha eu 17 anos. Minha irmãzinha era mais nova do que eu cinco anos, mas já estava ficando moça, uma moça linda, penso que minha mãe deveria ser assim quando ele a conheceu. Às vezes acho que ele pensava o mesmo, pois, como naquele dia, o peguei várias vezes a olhar minha irmã demoradamente; daí seu rosto se torcia em uma expressão de raiva e tristeza e ele se virava a fitar a porta dos fundos sempre entreaberta. O ferrolho fora arrebentado de dentro para fora com o soquete de carne, e foi só o que ele encontrou na casa naquele dia em que voltou do trabalho – o soquete e as gavetas vazias. Que o mal que ontem nos afligiu hoje não nos acompanhe, Amém; dizia em voz monótona sempre antes de começarmos a comer.
Ele nunca consertou o ferrolho.
Está sem sal. Um tsic quase inaudível escapou dos lábios de minha irmã. Um simples tsic. Você tem pressão alta pai, ela ia dizer como sempre quando ele fazia essa reclamação rotineira. Mas nesse dia fora diferente. O tsic reverberou em seu crânio e estremeceu seu corpo fazendo-o levantar em direção a ela. Sua mão fechada cruzou o espaço entre os dois direto à boca de minha irmã, esmagando dentes, gengiva e um sorriso brilhante que ela nunca mais lembraria como dar. O impacto arremessou-a contra a parede, a panela voou de sua mão, caindo e espalhando a sopa pelo chão. Ele avançou em fúria até a garota que escorregava, como manteiga no pão quente, pela parede até o chão e sem hesitar chutou sua barriga. Imediatamente ela ficou roxa, a respiração rarefeita, a boca escancarada buscando o ar que fugia correndo de seus pulmões como um cão quando enxotado. Mas eu vi que ele não ia parar. Quando ia dar outro chute, levantei súbito como um raio e o empurrei para longe dela. Foi o meu fim.
Ele se ergueu, Ah, então se já é homem pra me enfrentar, então vai apanhar como homem. Vou te mostrar quem manda nessa casa, e me deu um murro no nariz que esvaiu em sangue. Foge, gritei. Ela entendeu. E então, não é homem? e me deu um soco no estômago com tanta força que meu corpo vergou sobre si, Foge, eu gritava em dor. Minha irmã começou a rastejar, puxando e arrastando o corpo pelas unhas que cravava no chão, sugando o ar que respiram as solas dos sapatos. Outro soco na cabeça, cambaleei para trás, acho que eram trevas no canto do olho, ou sangue, já não sei, ela se arrastava pelo portal em direção à dispensa embaixo da escada, ele vinha e sua mão quebrou algo em minha boca; acho que engoli pedaços de meus dentes, ela continuava se arrastando, ele continuava avançando, as trevas ou o sangue, não sei, tomavam minha vista, ouvi, graças a Deus, a fechadura da dispensa se fechar, então cai pesado no chão com um baque surdo. Senti ainda um chute no estômago e um pisão nas costelas, antes de ouvir aquele homem pegar o casaco e sair calmamente e a porta da frente se fechar. Fiquei no chão sugando o ar que respiram as solas dos sapatos lembrando se em algum momento levantara a mão meu pai.
Não, não levantei.

Uma mosca pousa em sua testa. Suas sobrancelhas ainda são grossas, encontrando-se na linha do rosto em cima do nariz. A febre cedeu; dorme calmo, tranqüilo, como qualquer homem de bem. Quarenta e dois anos depois e sou a única pessoa que ele tem para chamar. Olho pela porta entreaberta e vejo meu quarto do outro lado do corredor. Às vezes, a pequena Mariângela ia lá e pedia para eu segurar sua mão, pois tinha medo do escuro. “Você toma conta de mim?”. “Sim minha irmã, tomo”. Tirei-a de casa, mas nada pude contra o coágulo em sua cabeça – “oriundo de prováveis traumas recorrentes na região”, disse-me o laudo.
01:31, hora do remédio. Ele dorme, hoje sem tossir nem cuspir aquele negro catarro. “Deficiência respiratória devido ao uso excessivo de cigarros”, me dissera o médico; “É esperado que seus pulmões parem a qualquer instante”. Olho para o frasco na mesinha ao lado da cama, olho para o travesseiro ao lado dele.
Ele dorme tranqüilo, como qualquer homem de bem.
Vejo a pequena Mariângela correndo pela casa, já estava ficando uma moça linda.
Em nenhum momento lhe levantara a mão.
Olho para o frasco na mesinha ao lado da cama, olho para o travesseiro ao lado dele.
“A qualquer instante”.
A mariposa dá voltas pela cama.

Que o mal que ontem nos afligiu hoje não nos acompanhe.
Amém.

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