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sexta-feira, 25 de maio de 2007

Pular Carniça - Concurso Prêmio Centenário José Lins do Rego

Tudo corria dentro da mais perfeita normalidade. Não havia pessoas correndo para todos os lados, gritos, confusão, ou algum barulho desprovido de sentido. Poucos carros passavam, pelo avançado da hora, a barraca de cachorro-quente atendia seus clientes notívagos, algumas pessoas no ponto esperavam a condução demorada. Nada fora do normal para essa madrugada de quinta, não fosse o corpo estendido no chão.

Lembro-me de quando cheguei a esta cidade. Não, não quero me ater ao choque que embaralha os sentidos de todo interiorano quando este chega em uma capital – ainda mais uma metrópole como o Rio. Todo emigrante, retirante, viajante, todo aquele em jornada ou de passagem, sente isso. E os relatos chegam a perder a graça de tão iguais: o mar de pessoas apressadas, ruas gigantes, ruas apertadas, prédios rasgando o céu, aleijados dormindo no chão, o ar sujo e carregado de barulho, carros importados e exposições de arte, bancos 24h, restaurantes 24h, gente 24h, disque-comida, disque-farmácia, disque-companhia, buzinas, pastelaria de dono chinês e cybercafé. Se alguém quiser que eu explique como foi para mim esse caleidoscópio cultural, que experimente por si mesmo: pare um dia no meio da avenida mais movimentada, feche os olhos, respire e depois os abra. E tente enxergar. Está tudo lá. Inclusive o homem morto.

Não sei como fora parar lá. Nem o que causara sua morte. Estirado no asfalto, ao lado do ponto de ônibus, um rastro vermelho vinha de sua cabeça até o meio-fio. Na barraquinha, mais dois cachorros-quentes foram vendidos.

Leio o jornal para esquecer o homem morto. Nas manchetes vejo uma releitura da Bíblia, com casas destruídas, barracos desabando nas encostas, centenas de desabrigados, tudo pela força das Águas que toma forma de enchente e inundação. Lembro desse horror em minha infância no Engenho, quando da subida do rio, com as águas invadindo nossa Casa Grande, tornando o canavial em mar. Lembro do Amâncio abrindo sua casa para nós, dos peões levando comida para as vítimas, criando barricadas para a água, o povo de terras vizinhas vindo para ajudar. No engenho não se entendia por família só os unidos pelo sangue. “Ah!, isso tudo é uma palhaçada”, esbraveja um homem que se achega, apontando uma manchete em meu jornal que dizia “Campanhas de doação para os desabrigados estão sendo realizadas...”. Continuou, “Sou professor em Angra dos Reis. Vi dezenas de famílias aglomeradas na escola municipal, daí, quando percebi, os responsáveis pela distribuição das roupas e dos alimentos estavam separarando as doações: tudo que vinha de Ipanema, Leblon, tudo que vinha da alta da roda, ia pra uma sala separada. Nada daquela sala jamais foi visto pelos desabrigados”. Chega seu ônibus e ele parte. Olho as fotos e penso no Engenho... Mesma água, pessoas diferentes.

Um cara passa correndo a meu lado em direção ao ponto de ônibus. Faz sinal com o braço, o motorista pára. Ele corre, pula por cima do homem morto, pega sua condução. O motorista arranca e quando sai quase passa por cima da cabeça do defunto.

Outro cadáver que tenho na memória, conheci quando Aquela-que-a-todos-vem parou para uma visita no Ateneu. Franco se foi em um domingo alegre e com um enterro modesto. O diretor Aristarco chorou não a perda de um aluno, mas a perda de seu “cão”, de seu “exemplo ruim para o resto dos alunos”. Chorou com uma fragilidade que acabou com qualquer semelhança que eu antes via com a figura de meu avô, o Coronel José Paulino. Aliás, fragilidade, no Ateneu, encontrava nos rapazes tímidos e ingênuos sempre quem os impelisse para o sexo da fraqueza – eram “dominados, festejados, pervertidos como meninas ao desamparo”, alertara-me um aluno. “Vais encontrar o mundo”, dissera o pai de um colega efeminado, à porta do Ateneu – e encontrou, entre suor, preconceito, sangue e libido. Tudo, no final, consumido em um incêndio junto com o nobre colégio. Mas as chamas ainda estavam nos olhos desse garoto quando o encontrei, através de suas memórias escritas, anos depois.

“Tem fogo doutor?” pergunta, de repente, um mendigo a meu lado. Aparecera do nada; uma figura estranha, sombria, barbas longas, cabelos desgrenhados, os dentes tortos em um sorriso malicioso. A pele escura pela sujeira e voz arranhada dão o tom nefasto de um mau presságio. Acendo seu cigarro e ele parte, repugnante, bem devagar, como Os Cegos de Baudelaire, ao mesmo tempo sinistro, como uma criatura de Stephen King. Quando pequeno diziam haver um lobisomem nas terras do Engenho. Sacudo a cabeça para espantar essas besteiras, lembro que aqui no Rio tenho de ter medo é de assaltante e bala perdida. Por que aqui, viver sobre o natural é o mais aterrorizante

Essas recordações saudosas do Engenho... cairei no piegas do emigrante que fica a sonhar com sua terra abandonada? Ficarei tecendo odes aos pés de milho crescendo, canções para a cana acamando na várzea, sonetos ao gado gordo e as vacas parindo? Na verdade o Engenho se tornou um monte de mato na primeira vez que vi dúzias de garotas de biquíni na praia. Prefiro minha respiração batendo com as ondas na arrebentação e suas sereias do que a perambulação por brejos e pés de cana.

Perdi meu ônibus. Diabos...! Estas cenas aprisionaram-me e por um instante fiquei como os canários na gaiola. Quando pequeno caçava dúzias deles. Ficava horas no sótão, preparando as armadilhas e observando sorrateiramente minha presa. Então via como ela ia se tornando segura, até entrar na armadilha e eu ouvir o fechar do alçapão. Agora, cativo, passava de minha reles presa a meu grande amigo engaiolado. E éramos irmãos em semelhantes grades, as da gaiola e as da solidão; e para eles eu era todo atenção, eles eram meus confidentes, meu passatempo, a razão do meu Tempo, cuidava deles, rezava por eles, amava-os. E assim iam os dias... Até que ganhei um lindo carneiro para montaria, chamado Jasmim, e desfilava sobre ele por todo o Engenho, causando inveja a todos. E nunca mais tive tempo para aqueles canários na gaiola.

Meia hora até o próximo. E tudo no mesmo lugar: eu, a barraquinha de cachorro-quente, o mendigo, os caras parados no ponto e o homem morto. Simples assim. Nada mágico como as fábulas da velha Totonha nas noites quentes do Engenho. Ela, que sabia como ninguém contar uma história, não teria aqui matéria-prima para a imaginação – um homem morto no chão, outro homem em pé a olhá-lo. Sem ação, emoção, sem pompa nem vida. Tudo parado, tudo tem lugar e o homem morto chega a fazer parte natural da cena.

Finalmente, outro ônibus. O transporte de madrugada é um desalento. Entro no ônibus, sento, e nem lembro de dar uma última olhada para o homem morto. Esqueci dele assim como do Engenho tinha me esquecido. Troquei-o por um ônibus. Troquei a infância pela cidade. Troco de assento agora porque a janela desse não abre. Assim funciona o coração: caça, captura, devora, até surgir caça nova. Talvez lembre do Engenho quando estiver caído, sozinho ao chão e outros me pulem para poder ir para casa.

Um comentário:

Unknown disse...

Amigo, pode tirar o " aprendiz de"... você é escritor... poeta... e músico também. Parabéns!